terça-feira, 2 de dezembro de 2025

A progênie da brasilidade, por Merval Pereira

O Globo

De vez em quando, e com segundas intenções, os três filhos mais velhos de Bolsonaro se unem para afastar “interesseiros”.

A família Bolsonaro vem se esmerando em destruir-se publicamente, com intrigas e acusações em tom elevado que transformam a privacidade em ação política, para o bem e para o mal. Samuel Johnson, pensador britânico do século XVIII, dizia que os personagens das peças de Shakespeare resumiam a “progênie da humanidade”, sem faltar “nenhum tipo humano relevante, ou sentimento”. Como ele, muitos de nossos especialistas em Shakespeare gostam de fazer comparações de personagens dele com políticos brasileiros, pois também nossa política abarca a “progênie da brasilidade”, já que os parlamentares representam a diversidade dos eleitores. A começar pelo próprio Bolsonaro.

Usando comentários de amigos especialistas em Shakespeare, como o economista Gustavo Franco e o advogado e escritor José Roberto Castro Neves, que doam seu tempo para ilustrar amigos como eu nas sutilezas do mestre de Stratford-upon-Avon, não resisto a comparar a família Bolsonaro à família do Rei Lear, embora a deste fosse composta de filhas mulheres, e a daquele de homens. A tragédia da família Bolsonaro tem tons shakespearianos, e o ex-presidente brasileiro disputa o amor de seus filhos colocando uns contra os outros. Mas, de vez em quando, e com segundas intenções, os três mais velhos se unem para afastar “interesseiros”.

Como agora. Decidiram se unir contra a madrasta Michelle, que começa a colocar as asinhas de fora para alçar voos mais altos, rumo à Presidência da República. O então ministro Gustavo Bebianno foi afastado de Bolsonaro por uma intriga de Carlos, o Zero Dois. Quem será a Cordélia de nossa chanchada shakespeariana? A terceira filha, que não é bajuladora, acaba banida em benefício das duas outras, bem mais ambiciosas, Goneril e Regan.

O deputado Eduardo Bolsonaro, que foi para os Estados Unidos com a tarefa de levar o governo Trump a libertar seu pai das garras do ministro Alexandre de Moraes, tentou passar-se pelo filho que trabalha pelo pai sem ser reconhecido por isso. Acusado de ter colocado o pai numa fria com a história das sanções comerciais, Eduardo manifestou-se publicamente, chegando a xingar o pai num telefonema. Cordélia não faria isso.

Bolsonaro, assim como o Rei Lear, só leva em conta os que o apreciam e o aceitam como ele é. Trava a decisão sobre o candidato de direita à Presidência da República porque ainda não aceita não ser ele. Como disse o bobo da Corte ao Rei Lear:

— Tu não deverias ter ficado velho antes de ter ficado sábio.

Pelos azares da sorte, o Brasil vê-se enredado em duas lideranças políticas que podem ser definidas da mesma maneira, iludem-se com a sensação de que ainda andam sobre as águas.

Há ainda exemplos de personagens shakespearianos que lembram defeitos de Bolsonaro, como o machismo e ressentimentos. Coriolano também veste o perfil de Bolsonaro. Tinha enorme ressentimento da elite política, que o preteriu, a despeito de seu heroísmo. Era o outsider agressivo. Angelo, um puritano hipócrita em “Medida por medida”, assediando a freira Isabela para não executar seu irmão. Petruchio em “A megera domada”, tentando controlar Catarina, “brusca, irritada e voluntariosa”, e, finalmente, domando-a com brutalidade — os dois personagens referem-se ao machismo. Michelle Bolsonaro vive (ou revive) essa situação.

A peça acaba com uma admissão de inferioridade da megera subjugada:— O mesmo dever que prende o servo ao soberano prende, ao marido, a mulher. E, quando ela é teimosa, impertinente, azeda, desabrida, não obedecendo às suas ordens justas, que é então senão rebelde, infame, uma traidora que não merece as graças de seu amo e amante?

É o que alegam os três filhos mais velhos de Bolsonaro contra Michelle. A madrasta também alega que cumpriu orientação de Jair ao criticar o acordo do PL do Ceará com o candidato ao governo Ciro Gomes.

 

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