O Globo
Regras para usos considerados de “alto risco”
de IA foram adiadas para dezembro de 2027
Muito discretamente, no último dia 19, a
Comissão Europeia soltou um comunicado à imprensa anunciando uma imensa mudança
no pacote de regulações de inteligência artificial. Um press release, só isso.
Horas depois, um funcionário da Comissão desceu para falar com repórteres e
tentar saciar quaisquer dúvidas. Não era ninguém com cargo alto na burocracia.
Quem escreveu sobre a coletiva improvisada nem mencionou seu nome. Foi assim
que a Europa comunicou ao mundo que as pesadas regras para usos considerados de
“alto risco” de IA não começam em agosto de 2026. Ficaram adiadas para dezembro
de 2027. A UE deu para trás.
Quando a Lei de IA foi aprovada, em março de 2024, a presidente da Comissão, Ursula von der Leyen, fez discurso. A ela seguiu-se a vice-presidente, depois o comissário do Mercado Interno Europeu. Queriam as manchetes dos jornais do continente e conseguiram.
— O primeiro marco regulatório abrangente
para as IAs em todo o mundo — disse Von der Leyen.
— O modelo estabelecerá um padrão global —
apostaram muitos dos analistas. (Incluindo este aqui.)
O que aconteceu não é difícil explicar. Dois
anos passados, Donald Trump está
na Presidência dos Estados Unidos e
pôs o pé fundo no acelerador da inteligência artificial. Os americanos tratam
a China como
seu principal adversário e estão numa corrida para saber quem chega primeiro a
uma IA capaz de se equiparar à inteligência humana. Não é certo que uma
tecnologia assim seja possível, mas ninguém quer apostar que não acontecerá.
Regras talvez sejam boas para proteger cidadãos. Mas, com Estados Unidos e
China agressivíssimos, com incentivos de toda sorte ao setor, os europeus
fizeram a conta óbvia. Se num canto não tem regra e na Europa a burocracia é
extensa, quem sabe construir IAs vai para a China ou para os Estados Unidos. O
continente ficou fora do jogo. Aí piscou.
A regra europeia é boa. Estabeleceu alguns
níveis para usos distintos de IA. Na categoria do risco inaceitável, estão
manipular as pessoas usando a tecnologia; classificar uma população com
atributos biométricos como raça, orientação sexual ou crença religiosa; usar IA
para vigilância em tempo real. Isso foi proibido a partir de fevereiro deste
ano — e segue proibido.
Na categoria de alto risco, estão usar IA
para tirar conclusões sobre a saúde de alguém; usar IA para definir em que
áreas a polícia deve agir mais; usar dados públicos para identificar
indivíduos— registros eleitorais, documentos em cartórios. Até o uso de dados
pessoais de cidadãos europeus para treinamento de IAs estava aí nessa categoria
de alto risco, que incluiria diversas exigências para que fosse permitido.
Essas regras entrariam em vigor no início do segundo semestre do ano que vem.
Pois todo mundo ganhou um ano e meio mais para trabalhar à vontade.
Não é à toa que nenhuma autoridade europeia
quis fazer um grande anúncio da mudança. A pancada de muitas organizações de
defesa de direitos civis veio imediatamente. Também dos jornais. A crítica teve
um tom óbvio: a União Europeia (UE) se curvou ao poder das grandes empresas de
tecnologia.
As consequências, porém, não se limitam à
Europa. Se a UE não consegue fazer a regulação, não serão países
latino-americanos ou asiáticos que conseguirão. De certa forma, para quem
defende que é necessário criar regras mais rígidas, o Velho Continente oferecia
guarida. Afinal, o PIB interno da
área de mercado comum é superior ao da China. As big techs não poderiam
escolher sair do mercado. Poderiam não produzir lá, poderiam ter ferramentas
adaptadas para os europeus, mas ausentar-se era muito difícil. Essa segurança
servia de garantia para quaisquer outras nações que decidissem seguir o mesmo
caminho.
Não mais. Em essência, a Presidência de Trump
mudou o curso que o mundo seguia. Com menos regras, o setor certamente fica
mais livre para se desenvolver. Isso representa aceleração, mais IAs surgirão,
capazes de mais coisas. Não é absurdo crer que trarão incontáveis benefícios.
Mas é certamente difícil prever todas as consequências. E não é uma escolha sem
custos. A população mundial, afinal, não tem voto nas decisões que serão
tomadas fazendo uso, em grande parte, das informações que todos nós,
coletivamente, criamos todos os dias.

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