terça-feira, 2 de dezembro de 2025

Europeus com o rabo entre as pernas, por Pedro Doria

O Globo

Regras para usos considerados de “alto risco” de IA foram adiadas para dezembro de 2027

Muito discretamente, no último dia 19, a Comissão Europeia soltou um comunicado à imprensa anunciando uma imensa mudança no pacote de regulações de inteligência artificial. Um press release, só isso. Horas depois, um funcionário da Comissão desceu para falar com repórteres e tentar saciar quaisquer dúvidas. Não era ninguém com cargo alto na burocracia. Quem escreveu sobre a coletiva improvisada nem mencionou seu nome. Foi assim que a Europa comunicou ao mundo que as pesadas regras para usos considerados de “alto risco” de IA não começam em agosto de 2026. Ficaram adiadas para dezembro de 2027. A UE deu para trás.

Quando a Lei de IA foi aprovada, em março de 2024, a presidente da Comissão, Ursula von der Leyen, fez discurso. A ela seguiu-se a vice-presidente, depois o comissário do Mercado Interno Europeu. Queriam as manchetes dos jornais do continente e conseguiram.

— O primeiro marco regulatório abrangente para as IAs em todo o mundo — disse Von der Leyen.

— O modelo estabelecerá um padrão global — apostaram muitos dos analistas. (Incluindo este aqui.)

O que aconteceu não é difícil explicar. Dois anos passados, Donald Trump está na Presidência dos Estados Unidos e pôs o pé fundo no acelerador da inteligência artificial. Os americanos tratam a China como seu principal adversário e estão numa corrida para saber quem chega primeiro a uma IA capaz de se equiparar à inteligência humana. Não é certo que uma tecnologia assim seja possível, mas ninguém quer apostar que não acontecerá. Regras talvez sejam boas para proteger cidadãos. Mas, com Estados Unidos e China agressivíssimos, com incentivos de toda sorte ao setor, os europeus fizeram a conta óbvia. Se num canto não tem regra e na Europa a burocracia é extensa, quem sabe construir IAs vai para a China ou para os Estados Unidos. O continente ficou fora do jogo. Aí piscou.

A regra europeia é boa. Estabeleceu alguns níveis para usos distintos de IA. Na categoria do risco inaceitável, estão manipular as pessoas usando a tecnologia; classificar uma população com atributos biométricos como raça, orientação sexual ou crença religiosa; usar IA para vigilância em tempo real. Isso foi proibido a partir de fevereiro deste ano — e segue proibido.

Na categoria de alto risco, estão usar IA para tirar conclusões sobre a saúde de alguém; usar IA para definir em que áreas a polícia deve agir mais; usar dados públicos para identificar indivíduos— registros eleitorais, documentos em cartórios. Até o uso de dados pessoais de cidadãos europeus para treinamento de IAs estava aí nessa categoria de alto risco, que incluiria diversas exigências para que fosse permitido. Essas regras entrariam em vigor no início do segundo semestre do ano que vem. Pois todo mundo ganhou um ano e meio mais para trabalhar à vontade.

Não é à toa que nenhuma autoridade europeia quis fazer um grande anúncio da mudança. A pancada de muitas organizações de defesa de direitos civis veio imediatamente. Também dos jornais. A crítica teve um tom óbvio: a União Europeia (UE) se curvou ao poder das grandes empresas de tecnologia.

As consequências, porém, não se limitam à Europa. Se a UE não consegue fazer a regulação, não serão países latino-americanos ou asiáticos que conseguirão. De certa forma, para quem defende que é necessário criar regras mais rígidas, o Velho Continente oferecia guarida. Afinal, o PIB interno da área de mercado comum é superior ao da China. As big techs não poderiam escolher sair do mercado. Poderiam não produzir lá, poderiam ter ferramentas adaptadas para os europeus, mas ausentar-se era muito difícil. Essa segurança servia de garantia para quaisquer outras nações que decidissem seguir o mesmo caminho.

Não mais. Em essência, a Presidência de Trump mudou o curso que o mundo seguia. Com menos regras, o setor certamente fica mais livre para se desenvolver. Isso representa aceleração, mais IAs surgirão, capazes de mais coisas. Não é absurdo crer que trarão incontáveis benefícios. Mas é certamente difícil prever todas as consequências. E não é uma escolha sem custos. A população mundial, afinal, não tem voto nas decisões que serão tomadas fazendo uso, em grande parte, das informações que todos nós, coletivamente, criamos todos os dias.

 

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