Se o líder do governo no Senado, Eduardo Braga, foi fiel às palavras de Lula, se não pretendeu só apresentar uma versão mais bem acabada do que lhe teria dito o ex-presidente sobre a necessidade de alterar os “paradigmas” da coalizão governamental, estamos diante de um profundo exercício de autocrítica.Ou da materialização do “faço o que eu digo, mas não faça o que eu faço”.
Braga foi visitar o ex-presidente na sexta-feira e diz ter ouvido dele o seguinte raciocínio: “O país vive uma nova realidade política e social, por isso é fundamental a renovação e a instituição de novos métodos e práticas políticas”.
Nova realidade, conforme o explicado, em relação à época em que o PT assumiu a Presidência. Nove anos atrás, imbuído da disposição de reinventar o Brasil.
Entre as novidades, introduziu no cenário a legitimação do aprofundamento de velhos vícios sob a justificativa de que seria essa a única maneira de se governar o país.
De lá para cá muita coisa mudou. O uso do caixa dois em campanhas eleitorais, por exemplo, virou argumento de defesa e comportamentos tidos como desviantes passaram a ser vistos explícita e assumidamente como imperativos indispensáveis ao bom andamento dos trabalhos governamentais.
Nos dois casos, alterações decorrentes da interpretação do próprio Lula sobre a vida e suas circunstâncias no poder. Quanto ao caixa dois, o "todo mundo faz" foi adotado pelo então presidente como baliza de conduta na inesquecível entrevista dada em Paris com o fito de enquadrar os crimes contidos na rubrica "mensalão" na moldura das infrações de caráter eleitoral.
A respeito dos meios e modos de funcionamento de uma base de sustentação partidária no Congresso, ele falou claro à Folha de S.Paulo em outubro de 2009.
A pergunta era sobre as críticas de Ciro Gomes à tolerância de Lula e Fernando Henrique ao uso de bens públicos como instrumentos privados na prática do fisiologismo.
Resposta do presidente: "Qualquer um que ganhar as eleições, pode ser o maior xiita ou o maior direitista, não conseguirá montar o governo fora da realidade política. Entre o que se quer e o que se pode fazer tem uma diferença do tamanho do Oceano Atlântico. Se Jesus Cristo viesse para cá e Judas tivesse a votação (sic) num partido qualquer, Jesus teria que chamar Judas para fazer coalizão".
Naquela altura já haviam transcorrido quase oito anos da posse de Lula e o que se via era a aceitação não o inconformismo com a situação posta. Desde então, passaram-se menos de três anos e o que se fala agora é na chegada de um "momento de transformação" imposto por uma "nova realidade".
É de se perguntar qual realidade nova. As únicas mudanças visíveis são as decorrentes do acúmulo de deformações resultantes dos termos do contrato desde lá atrás firmado com os partidos, e renovado não faz muito tempo pelo próprio Lula.
Seja quando da campanha para eleger Dilma ou mesmo depois, na formação do ministério feita conforme as mesmas regras. Na hora da eleição ou da distribuição inicial dos cargos, nenhuma das agremiações envolvidas foi informada sobre uma possível alteração nos mandamentos.
Compreende-se o desconforto da presidente com a sistemática da chantagem permanente, com a necessidade de reservar tempo para dar atenção aos condôminos do latifúndio que comanda, das imposições de uma arte que não lhe é familiar.
Mas não é aceitável crer que depois de oito anos no topo do governo ela não soubesse onde pisava ou não tivesse ideia do preço da construção de um edifício enorme (80% do Congresso) erigido sob os alicerces frágeis da cooptação.
Louvável, e necessário, que a presidente queira mudar as regras do jogo. Só não pode é fazer de conta que as ignorava – tanto que aceitou jogar de acordo com elas – nem tentar mudá-las na base da queda de braço com os parceiros.
Ou bem enfrenta de fato o problema mediante a reformulação clara dos termos do pacto ou mais cedo ou mais tarde terá de ceder às cláusulas do velho contrato em vigor.
FONTE: O ESTADO DE S. PAULO
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