Analistas avaliam que o Papa sul-americano terá considerável impacto político na região ao se voltar à população mais pobre, que vem migrando para igrejas neopentecostais, revelam Mariana Timóteo da Costa e Janaina Lagè. Na Argentina, Francisco sempre criticou os Kirchner e seu fracasso no combate à miséria. Não à toa, sua ascensão inquieta também líderes populistas que se fiam em políticas assistencialistas, informa José Casado. "Essa Igreja que cumpre o papel dos jesuítas pode fortalecer a consciência crítica da população" diz Marlos Lima, do Centro Latino-Americano de Políticas Públicas da FGV
Nova peça forte no xadrez regional
Ênfase de Francisco na atenção aos pobres sul-americanos deve invadir terreno de líderes populistas e igrejas neopentecostais
Mariana Timóteo da Costa, Janaina Lage
SÃO PAULO e RIO - A chegada de um Papa latino-americano pode, na avaliação de especialistas ouvidos pelo GLOBO, ocupar um espaço entre os pobres que, na região, foi preenchido ao longo dos últimos anos pelas igrejas neopentecostais e por governos considerados populistas. Essas lideranças optaram por plataformas que muitas vezes iam contra o pensamento católico - fosse por políticas unicamente assistencialistas fosse com brigas e críticas a arcebispos locais. Ou ainda com o fomento de ideias marxistas, ou com a aproximação crescente com a China, país do qual muitos desses governos latino-americanos começaram a depender, e onde religiosos e outros dissidentes até hoje são perseguidos. A escolha do argentino Jorge Mario Bergoglio terá impacto não somente no papel da região, que abriga 42% da população de católicos, e no futuro da Igreja, como também na geopolítica local. Segundo especialistas, as mudanças tendem a acontecer no médio e longo prazo, seguindo o ritmo da própria instituição, mas seu alcance pode incluir um destaque maior para políticas regionais, educação e a disseminação da fé na América Latina.
- Apesar de o pensamento do Papa Francisco ser conservador em seu lado doutrinário, ele é um pastor na parte social e já falou muito, deu sinais muito claros, sobre a necessidade de se combater a desigualdade na América Latina. Neste aspecto, ele se aproxima muito à Teologia da Libertação. Seu papado pode representar uma volta àquela ideia de que é com justiça social, e não apenas com assistencialismo, que se ajuda aos pobres. E que é essa justiça social a única capaz de gerar uma democracia de verdade, uma democracia participativa - avaliou Leonardo Boff, um dos ideólogos do movimento surgido dentro da Igreja Católica latina nos anos 1960.
Para Francisco Borba, coordenador do Núcleo de Fé e Cultura da PUC de São Paulo, Francisco poderia revisar a Teologia da Libertação e corrigir algumas de suas falhas para atingir seu principal objetivo: uma Igreja mais voltada para os pobres. Segundo ele, não foi somente a repreensão do Vaticano que fez com que a Teologia da Libertação não encontrasse eco frente aos fiéis latinos. Ao dar muita ênfase à política, a doutrina teria deixado o caráter mais espiritual do catolicismo de lado. Isso teria ajudado o surgimento e o avanço das igrejas neo-pentecostais, especialmente entre os menos favorecidos. Ao contrário da Igreja Católica, avalia, os evangélicos se conectaram facilmente aos fiéis ao dizer que "Deus é quem salva, Deus é maior do que os seres humanos, tirando o peso sobre o homem de realizar atos heroicos", e ao criarem uma mensagem muito direta, de que "eu sou bom, o mundo é que é mau", entre outros aspectos.
- Francisco, no entanto, pode unir esses dois pensamentos. Seria interessante, e muito bom para aumentar a qualidade dos fiéis católicos, uma união entre o amor pela doutrina católica e o pensamento social - diz Borba, dando como exemplo um homem que, na história da Igreja latina, teria atingido isso: o arcebispo salvadorenho Óscar Romero. - Ele era muito conservador, muito místico, tinha uma religiosidade profunda, mas era defensor dos pobres, denunciava os abusos econômicos e dos direitos humanos em seu país.
Romero foi assassinado em 1980 pelo governo de direita de El Salvador, enquanto ele celebrava a missa. O país mergulharia logo depois numa sangrenta guerra civil. Seu processo de canonização está em andamento no Vaticano. Um dos defensores mais árduos de que Romero seja beatificado é o arcebispo de Honduras Oscar Andrés Rodriguez Maradiaga - que teria sido um dos maiores costuradores da eleição de Francisco. Maradiaga trabalha muito com o Centro LatinoAmericano para o Desenvolvimento, a Integração e a Cooperação (Celadic), uma entidade multidisciplinar com sede entre o Panamá e a Venezuela, mas que tem muitos religiosos pensando "soluções para a região", conta Borba, que representa a organização no Brasil.
- Existe uma visão comum de que a democracia não consegue se construir sobre valores 100% laicos - afirma.
Há dúvidas sobre até que ponto Francisco influenciará políticas internas. Alguns especialistas acham que, no caso argentino, ele pode se tornar o grande nome antikirchnerismo - dados os comentários ácidos trocados com a presidente Cristina Kirchner, que, no entanto, já ensaiou uma aproximação ao anunciar que comparecerá à missa inaugural do novo Papa.
- Cristina é uma política astuta, vai saber engolir os atritos para se aproveitar dos trunfos de ter um Papa argentino. E ela certamente não tem muitos outros trunfos para tirar no final de seu segundo mandato - afirma Leandro Karnal, professor de História das Américas da Unicamp. - Todos os políticos têm essa capacidade de passar por cima dos ressentimentos.
Nas últimas décadas, houve um avanço na região de governos marcados por traços de forte personalismo, com um discurso intensamente voltado para as camadas populares. Uma das expectativas é que a escolha de um jesuíta como Pontífice possa ampliar a presença da religião entre os mais pobres.
- Ter um Papa jesuíta tem um significado prático. Ele pode demandar dos governos ações sociais mais significativas. Essa Igreja que cumpre o papel dos jesuítas pode fortalecer a consciência crítica da população. Estes governos foram eleitos, são reflexo da sociedade. À medida que a própria sociedade muda, isso também traz consequências - afirma Marlos Lima, economista e chefe do Centro Latino-Americano de Políticas Públicas da FGV.
Para Vera Jurkevics, professora de História da Universidade Tuiuti do Paraná, os primeiros seis meses serão cruciais para definir as diretrizes do pontificado e o grau de envolvimento com temas locais, como a crítica a governos que recorrem à criação de líderes como figuras míticas, no caso de Chávez.
- Mesmo com toda essa euforia diante de atitudes simples e de um comportamento mais humilde, não podemos esquecer que essa instituição prima pelo conservadorismo. E isso vai estar expresso nos nomes que indicar para o cardinalato -disse.
Ela avalia que a educação será o principal fator de mudança, onde a Igreja deve investir para reconquistar o rebanho. Um dos caminhos poderia ser o fortalecimento dos colégios jesuítas.
Fonte: O Globo
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