quarta-feira, 18 de junho de 2025

A jurisprudência da defesa da democracia - Nicolau da Rocha Cavalcanti*

O Estado de S. Paulo

‘Proteção da democracia’ tornou-se sinônimo de ‘defesa da segurança nacional’. Adquiriu o mesmo valor axiológico-normativo

Em 2021, o Congresso cumpriu seu papel na tarefa de prover proteção jurídica à democracia. Revogou a Lei de Segurança Nacional (Lei 7.170/1983) e aprovou a Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito (Lei 14.197/2021). Com isso, o País abandonou uma legislação orientada à proteção ideológica do Estado e, em seu lugar, estabeleceu uma normativa de proteção das instituições. Gestada há décadas, a revogação da Lei 7.170/1983 teve um estopim concreto: o uso que o governo Bolsonaro vinha fazendo da legislação herdada dos tempos da ditadura para criminalizar opositores políticos.

Não basta, no entanto, ter uma nova lei adequada. Qual é a jurisprudência que o Judiciário tem promovido desde então? A aplicação da Lei 14.197/2021, feita pelo Supremo Tribunal Federal (STF) está sintonizada com as liberdades e garantias próprias do Estado Democrático de Direito? A defesa da democracia não visa a perseguir inimigos políticos, tampouco a discriminar uma corrente de pensamento, mas a assegurar o funcionamento das instituições, punindo, dentro do devido processo legal, as condutas proibidas.

Responder a essas perguntas envolve, em primeiro lugar, verificar a fundamentação das decisões judiciais. A legitimidade democrática do Judiciário não decorre da sintonia de sua atuação com a opinião pública, mas de uma sólida fundamentação – constitucional e legal – de suas decisões. Déficit de fundamentação é déficit democrático. E, por óbvio, não se defende a democracia transigindo com caminhos autoritários.

Fundamentar uma decisão judicial não se reduz a citar a “defesa da democracia”, como se fosse uma fórmula mágica. É preciso justificar – explicar, expor, demonstrar de maneira concreta – a razão pela qual tal comportamento ou publicação em rede social fere o ordenamento jurídico brasileiro. Essa exigência não é formalismo. É consequência do princípio, estruturante da República, de que ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (artigo 5.º, II da Constituição).

É constrangedor, mas temos de admitir. Em várias decisões do STF, a “proteção da democracia” tornou-se sinônimo de “defesa da segurança nacional”. Adquiriu o mesmo valor axiológico-normativo do conceito anterior, recebendo idêntico enfoque interpretativo. Só mudaram as palavras. Em algumas vezes, a menção à democracia foi usada como carta branca para atuar além dos limites institucionais; por exemplo, em detrimento do direito de defesa ou do princípio do juiz natural. Ora, isso não é defesa do regime democrático, mas deturpação das palavras, deturpação dos conceitos jurídicos, deturpação do poder.

Um parênteses. Não acredito que estejamos numa ditadura judicial. Congresso e Executivo funcionam livremente e, não menos importante, existe revisão das decisões judiciais. Além disso, são muitos os elementos que indicam a ocorrência de crimes contra a democracia. No entanto, como o próprio STF reconheceu em outros casos, o modo como o Estado atua na perseguição criminal é fundamental. Não é um vale-tudo.

Há também o tema da estabilidade da interpretação da lei e da própria compreensão dos fatos. Desde os primeiros casos do 8 de Janeiro, o STF entendeu que havia ali não apenas depredação do patrimônio público. No entanto, ao analisar o ofício da Câmara relativo ao deputado Alexandre Ramagem, a 1.ª Turma do STF considerou que os crimes contra o regime democrático imputados ao parlamentar tinham sido praticados antes de sua diplomação. Suspendeu, assim, o andamento da ação apenas em relação aos crimes de dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado, que teriam sido praticados após a diplomação. Mais do que procurar a interpretação mais draconiana em cada circunstância, a defesa da democracia demanda coerência ao longo do tempo na análise da lei e dos fatos.

A qualidade da defesa da democracia promovida pelo STF também tem sido afetada pela compreensão da própria Corte sobre alguns temas processuais. Há quatro pontos especialmente problemáticos: a inaplicabilidade do juiz de garantias a órgãos colegiados; a interpretação expansiva do instituto da conexão, ampliando a competência jurisdicional; a atuação de ofício do juiz; e o tratamento desigual dado às partes (acesso às provas, distinção entre testemunhas de acusação e de defesa).

Esse último tópico é notoriamente contraditório, pois remete ao que ocorria durante a vigência das diferentes edições da Lei de Segurança Nacional, nos tempos da ditadura. Com a aplicação do Código de Processo Penal Militar, havia um tratamento processual dos acusados incompatível com a presunção de inocência e o direito de defesa.

O Congresso revogou a Lei 7.170/1983. Ela já não está mais vigente. Mas há outro aspecto, ainda mais fundamental: com a Constituição de 1988, a sociedade brasileira revogou o espírito da Lei de Segurança Nacional. O Legislativo fez sua parte. Que o Judiciário construa sua jurisprudência de defesa da democracia fiel às regras e aos princípios constitucionais, provendo-lhes plena efetividade.

*Advogado

 

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