O Globo
Golpe de Estado ‘dentro das quatro linhas’ é
projeto cabível somente na cabeça de quem transcende os limites da
racionalidade
Não estamos testemunhando um processo
destinado a esclarecer um crime comum, urdido e cometido por marginais; estamos
atônitos assistindo ao supremo magistrado da nação ser acusado de tramar contra
o regime democrático que ele jurou preservar e, numa lambuja cruel, seus
auxiliares mais próximos e poderosos como chefe de gabinete, ministros e,
pasmem, comandantes das Forças Armadas e de órgãos de inteligência.
Que dizer numa crônica desse espetáculo
vergonhoso, negado pelo negacionismo ideológico dos asseclas e mal-educados
apoiadores?
É elite governamental envolvida num inexequível golpe de Estado “dentro das quatro linhas”, um projeto que é cabível somente na cabeça de quem transcende os limites da racionalidade e acha possível acender velas a Deus e ao diabo. Algo, aliás, típico do nosso adoentado sistema político.
Acresce a tudo isso um relator que muitos
pintam como promotor, mas que, nos seus interrogatórios, arrola documentos,
declarações e reuniões reveladoras de índoles e anseios antidemocráticos dos
golpistas gorados, confirmados nas desculpas evasivas e inermes dos
interrogados.
As inquirições podem desagradar aos
golpistas, mas não se pode negar seu nível de competência, num contraste
fulminante com as pífias performances dos acusados e com a pusilanimidade de
seu herói.
O que tenho visto nesse vergonhoso evento,
que, infelizmente, não é o único de nossa História, corta o coração de um velho
como eu. E envenena o dos jovens e de quem pensava a História como progressiva,
mas verifica que, no Brasil, ela marcha para trás.
Graças à nossa estadomania, à estadofilia e à
estadopatia, “fomos” tudo: reino, monarquia, República Velha e Nova, ditadura e
duríssimo regime militar. Só nos falta legalizar o ladravaz salvacionismo
populista.
São múltiplas as motivações da trama
golpista. Polarização, anistias, urna eletrônica como instrumento de roubo
eleitoral, populismo salvacionista, nacionalismo estatizante contra
iliberalismo.
Mas o que tenho testemunhado e aqui discutido
é o avacalhamento das responsabilidades coladas nos cargos públicos por
ocupantes que não honram seus encargos e suas demandas de impessoalidade, seja
por malandragem, seja por motivos políticos. O poder à brasileira matou a
dialética entre cargos e encargos, e assim escalamos canastrões para cargos
públicos cruciais, pondo em risco a democracia e a própria confiança no país.
Sem o enlace entre pessoa e papel, cargos públicos como o de presidente correm
o permanente risco de ser ocupados por canastrões e perdem sua legitimidade
como instrumentos de transformação coletiva.
O que dizer, pois, desses rituais em que valentes viram pusilânimes, senão reafirmar que o mundo vive uma enorme incoerência destrutiva? Prova cabal dessa incoerência é o indefensável, contraditório e inexecutável golpe “dentro das quatro linhas”.
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