Folha de S. Paulo
Os valores que nós progressistas cultivamos
não são os únicos em uma sociedade pluralista
A nossa tragédia política pode ter começado
no dia em que um deputado amalucado e conservador "descobriu" que
o MEC patrocinava
cartilhas e vídeos contra a homofobia nas escolas. Ou, em seus termos, para
incentivar a sexualização precoce de criancinhas e induzi-las à
homossexualidade. Bastou isso para Bolsonaro colocar sua indignação numa pauta
moral em que o governo era acusado de corromper a infância e os conservadores
conclamados a punir os infratores nas eleições.
De lá para cá, sucederam-se muitos episódios desse tipo. Lembram quando quadros de uma exposição para adultos em Porto Alegre foram acusados de estimular pedofilia? Ou do alvoroço com a performance de um artista nu no MAM, quando uma criança, acompanhada da mãe, tocou seu corpo? E de quando 108 mil pessoas assinaram uma petição para impedir Judith Butler de palestrar no Sesc Pompeia, com a frase "Deixem as nossas crianças em paz"?
Não faz muito tempo, Silas
Malafaia despejou raios e impropérios porque o Porta dos Fundos
representou Jesus como um homem gay. O pastor desafiou o grupo a fazer o mesmo
com Maomé e
os acusou de praticar vilipêndio religioso (artigo 208 do Código Penal).
O padrão é sempre o mesmo: é preciso punir o
que viola os nossos princípios. O argumento é que "eles não têm esse
direito" e que nada do que fizeram é protegido por liberdades. Se o que
temos de mais precioso —nossas crianças, moral e fé— foi atacado, o Estado ou a
vontade popular precisam correr em sua defesa. O fato é que há sempre uma parte
da sociedade convencida de que, em nome da defesa dos seus valores, a outra
parte tem que ser punida.
Em todas as ocasiões, progressistas se
recusaram a encerrar o debate diante da acusação de que um crime foi cometido.
Pediam para reexaminar os fatos (as alegações são mesmo verdadeiras?) ou
invocavam outros valores que igualmente precisam ser tutelados —como liberdade
de expressão, artística, de opinião e de cátedra— enquanto lembravam que o
preço do pluralismo, ao contrário da crença de Malafaia, é muitas vezes aceitar
ser ofendido e confrontado.
O curioso é que, em 2025, os papéis parecem
ter se invertido. Agora são os progressistas que gritam "isso é
crime", sentem-se insultados quando se pede a contraprova de que algo
intolerável foi de fato praticado e consideram ofensiva qualquer tentativa de
alegar que as liberdades do acusado merecem tutela. E, sobretudo, não admitem
que se compare a moral que defendem com aquela dos conservadores. Para eles, só
suas alegações de violação são verdadeiras; as do outro lado ou são
inaceitáveis ou são manipulações da opinião pública com propósitos políticos.
E não percebem que essa convicção só é
possível porque, como ensinou um filósofo bem antigo, o deus que a gente cultua
e os valores que a gente cultiva são sempre vistos como os mais sublimes
—quando não os únicos. E que todos os lados têm a mesma convicção.
Como liberal e iluminista, não acredito que
os vídeos do MEC induzam à homossexualidade, nem que o quadro de Adriana
Varejão faça apologia da zoofilia, nem que um Jesus gay ofenda o cristianismo.
Mas não considero insinceras ou estúpidas as dezenas de milhões de pessoas que
pensam o contrário. Todos têm os seus valores. Por isso, todos precisarão, vez
ou outra, se quiserem viver numa sociedade pluralista, engolir uns sapos.
Mas não entendo por que Malafaia precisa
engolir o sapo de um Cristo gay, mas os progressistas não podem engolir as
piadas escrotas que Leo Lins conta para o seu público. Dizer que "racismo
é crime" não é superior a quem diz "vilipêndio religioso é
crime". Se ambos são crimes tipificados, a única diferença consiste no
fato de que há mais juízes progressistas do que conservadores. Então, não é uma
questão de princípios, mas de quem tem mais força cultural e política?
Por fim, alegar que intolerantes não devem
ser tolerados nos obriga a explicar por que Leo Lins ameaça a tolerância
democrática, mas a corda esticada na representação de um Cristo homossexual
não.
Se eu não gostaria de viver numa sociedade em
que religiosos mandem para a cadeia —ou para a sepultura— artistas e
intelectuais que fazem troça de Jesus ou Maomé, por que, então, justificaria
uma que condena à prisão um humorista que ri de fracos e oprimidos? Claro que
eu gostaria de viver numa sociedade progressista, tanto quanto outros gostariam
de viver entre conservadores. Mas o que temos, de fato, é uma sociedade
pluralista em que conservadores e progressistas vão ter que compartilhar o
recinto.
Seremos capazes disso?
*Professor titular da UFBA (Universidade
Federal da Bahia) e autor de "Crônica de uma Tragédia Anunciada"
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