Valor Econômico
Enquanto não conseguirmos encaminhar melhores
soluções para o problema fiscal, vamos continuar a patinar
Numa hora de tanta apreensão, quando eclode
mais uma guerra, ameaçando a paz mundial, é preciso recorrer ao humor para
continuar debatendo os rumos do nosso país. E a espirituosa frase do jornalista
Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta, que inspirou o título para este artigo -
“Restaure-se a moralidade ou locupletemo-nos todos” -, continua a bem
representar o cerne dos nossos problemas macroeconômicos.
A bola da vez é o band-aid fiscal que foi
colocado para evitar o descumprimento das leis que regem a política fiscal
(entre elas o arcabouço fiscal, a lei de responsabilidade fiscal, o orçamento e
a LDO). Inicialmente, foi encaminhado uma MP que continha um aumento do IOF.
O IOF é um imposto que tem quase 60 anos e incide sobre diversas operações financeiras, como empréstimos, câmbio, seguros e operações de crédito. Meu saudoso professor e colega Dionísio Dias Carneiro relatava uma história interessante sobre o IOF. Quando explicaram ao prêmio Nobel de Economia Franco Modigliani, então em visita ao Brasil, o que era o IOF, ele teria dito: vocês conseguiram inventar um imposto que distorce tanto as decisões de poupar quanto as de investir, assim maximizando o dano causado por qualquer imposto. Ou seja, não se trata de um imposto que causa prejuízos apenas aos banqueiros, como por vezes equivocadamente se alega.
Como o IOF pode incidir sobre operações de
câmbio, ele foi o instrumento utilizado nos episódios recentes de excesso de
entradas de capital, nos anos 90, e durante o super boom de commodities, já
neste século, quando foram instituídos controles (sobre a entrada) de capital.
Assim, é no mínimo curioso que o governo não tenha se dado conta da associação
que o mercado fez entre controles de capitais e o IOF sobre as transações de
câmbio de investimentos de fundos no exterior. Só depois da publicação da MP é
que o governo voltou atrás no aumento do IOF para tais operações de câmbio,
mantendo os demais aumentos. Uma nova MP foi enviada, englobando outras fontes
de receita, como a tributação parcial de instrumentos de dívida incentivados,
isentos de imposto de renda sobre seus rendimentos.
Embora inicialmente parecesse que havia um
acordo para a aprovação de tais medidas, a perspectiva é que o Congresso as
rejeite. Na segunda-feira, a Câmara aprovou por ampla maioria urgência para
revogar o aumento do IOF. O embate entre os poderes da República faz lembrar a
máxima de Stanislaw Ponte Preta. Todos falam como se estivessem defendendo os
interesses dos brasileiros, sobretudo dos mais pobres, quando, na realidade,
tudo não passa de cortina de fumaça.
O jogo de empurra que os poderes da República
fazem com o problema fiscal não pode acabar bem
Há, entre as novas medidas tributárias
propostas pelo governo, muitas que são justas. Assim, como é também justa a
alegação de que a carga tributária no Brasil já é bastante alta, e que, antes
de aumentar impostos, se deveria cortar gastos. Sobretudo os menos defensáveis,
como supersalários. Mas nenhum lado quer mexer no que lhe beneficia.
O Executivo, por exemplo, recusa-se a
considerar medidas encaminhadas por sua própria equipe econômica para conter
despesas que estão explodindo, como a readequação do BPC e do seguro-defeso,
por medo das consequências eleitorais. O Congresso enche a boca para falar em
corte de gastos enquanto turbina emendas orçamentárias e aprova acúmulo de
aposentadoria com salário para seus membros. Sem contar o Judiciário e o
Ministério Público, no qual os pagamentos excedentes ao teto salarial, os
penduricalhos, são a regra e não a exceção.
Enfim, todos do andar de cima se locupletam à
larga e não estão dispostos a largar o osso a menos que todos os demais o façam
antes. É um impasse de difícil solução. No passado, tivemos de passar por uma
hiperinflação para que conseguíssemos avançar. Mas agora chegamos a nova
encruzilhada. Mas não há crise iminente.
A inflação, mesmo que bem acima da meta, está
razoavelmente controlada, ainda que com juros pantagruélicos. Hoje o Banco
Central (BC) vai decidir a taxa Selic. Qualquer que seja a decisão, continuará
praticando provavelmente a maior taxa de juros real do mundo, perto de dois
dígitos.
A combinação dessa política fiscal largamente
expansionista com política monetária muito contracionista é extremamente nociva
ao crescimento da economia brasileira, além de torná-la ainda mais desigual. Na
economia, não há nada mais importante do que botar um freio na expansão fiscal
descontrolada. Enquanto não conseguirmos encaminhar melhores soluções para o
problema fiscal, vamos continuar a patinar.
No último quarto de século, em que venho
escrevendo esta coluna no Valor,
já perdi a conta de quantas vezes repeti essa mensagem. Imagino que o(a)
leitor(a) que se mantém fiel deve estar farto de ler as muitas variações do
mesmo argumento. Mas não perco as esperanças de que vamos conseguir mudar um
dia. Só espero que para isso não seja necessária crise tão grande como a da
hiperinflação.
*Márcio Garcia é professor titular, Departamento de Economia da PUC-Rio, pesquisador afiliado da MIT Sloan School of Management, pesquisador sênior do CNPq e cientista Nosso Estado da FAPERJ.
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