quarta-feira, 18 de junho de 2025

Restaure-se a moralidade ou... - Márcio Garcia*

Valor Econômico

Enquanto não conseguirmos encaminhar melhores soluções para o problema fiscal, vamos continuar a patinar

Numa hora de tanta apreensão, quando eclode mais uma guerra, ameaçando a paz mundial, é preciso recorrer ao humor para continuar debatendo os rumos do nosso país. E a espirituosa frase do jornalista Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta, que inspirou o título para este artigo - “Restaure-se a moralidade ou locupletemo-nos todos” -, continua a bem representar o cerne dos nossos problemas macroeconômicos.

A bola da vez é o band-aid fiscal que foi colocado para evitar o descumprimento das leis que regem a política fiscal (entre elas o arcabouço fiscal, a lei de responsabilidade fiscal, o orçamento e a LDO). Inicialmente, foi encaminhado uma MP que continha um aumento do IOF.

O IOF é um imposto que tem quase 60 anos e incide sobre diversas operações financeiras, como empréstimos, câmbio, seguros e operações de crédito. Meu saudoso professor e colega Dionísio Dias Carneiro relatava uma história interessante sobre o IOF. Quando explicaram ao prêmio Nobel de Economia Franco Modigliani, então em visita ao Brasil, o que era o IOF, ele teria dito: vocês conseguiram inventar um imposto que distorce tanto as decisões de poupar quanto as de investir, assim maximizando o dano causado por qualquer imposto. Ou seja, não se trata de um imposto que causa prejuízos apenas aos banqueiros, como por vezes equivocadamente se alega.

Como o IOF pode incidir sobre operações de câmbio, ele foi o instrumento utilizado nos episódios recentes de excesso de entradas de capital, nos anos 90, e durante o super boom de commodities, já neste século, quando foram instituídos controles (sobre a entrada) de capital. Assim, é no mínimo curioso que o governo não tenha se dado conta da associação que o mercado fez entre controles de capitais e o IOF sobre as transações de câmbio de investimentos de fundos no exterior. Só depois da publicação da MP é que o governo voltou atrás no aumento do IOF para tais operações de câmbio, mantendo os demais aumentos. Uma nova MP foi enviada, englobando outras fontes de receita, como a tributação parcial de instrumentos de dívida incentivados, isentos de imposto de renda sobre seus rendimentos.

Embora inicialmente parecesse que havia um acordo para a aprovação de tais medidas, a perspectiva é que o Congresso as rejeite. Na segunda-feira, a Câmara aprovou por ampla maioria urgência para revogar o aumento do IOF. O embate entre os poderes da República faz lembrar a máxima de Stanislaw Ponte Preta. Todos falam como se estivessem defendendo os interesses dos brasileiros, sobretudo dos mais pobres, quando, na realidade, tudo não passa de cortina de fumaça.

O jogo de empurra que os poderes da República fazem com o problema fiscal não pode acabar bem

Há, entre as novas medidas tributárias propostas pelo governo, muitas que são justas. Assim, como é também justa a alegação de que a carga tributária no Brasil já é bastante alta, e que, antes de aumentar impostos, se deveria cortar gastos. Sobretudo os menos defensáveis, como supersalários. Mas nenhum lado quer mexer no que lhe beneficia.

O Executivo, por exemplo, recusa-se a considerar medidas encaminhadas por sua própria equipe econômica para conter despesas que estão explodindo, como a readequação do BPC e do seguro-defeso, por medo das consequências eleitorais. O Congresso enche a boca para falar em corte de gastos enquanto turbina emendas orçamentárias e aprova acúmulo de aposentadoria com salário para seus membros. Sem contar o Judiciário e o Ministério Público, no qual os pagamentos excedentes ao teto salarial, os penduricalhos, são a regra e não a exceção.

Enfim, todos do andar de cima se locupletam à larga e não estão dispostos a largar o osso a menos que todos os demais o façam antes. É um impasse de difícil solução. No passado, tivemos de passar por uma hiperinflação para que conseguíssemos avançar. Mas agora chegamos a nova encruzilhada. Mas não há crise iminente.

A inflação, mesmo que bem acima da meta, está razoavelmente controlada, ainda que com juros pantagruélicos. Hoje o Banco Central (BC) vai decidir a taxa Selic. Qualquer que seja a decisão, continuará praticando provavelmente a maior taxa de juros real do mundo, perto de dois dígitos.

A combinação dessa política fiscal largamente expansionista com política monetária muito contracionista é extremamente nociva ao crescimento da economia brasileira, além de torná-la ainda mais desigual. Na economia, não há nada mais importante do que botar um freio na expansão fiscal descontrolada. Enquanto não conseguirmos encaminhar melhores soluções para o problema fiscal, vamos continuar a patinar.

No último quarto de século, em que venho escrevendo esta coluna no Valor, já perdi a conta de quantas vezes repeti essa mensagem. Imagino que o(a) leitor(a) que se mantém fiel deve estar farto de ler as muitas variações do mesmo argumento. Mas não perco as esperanças de que vamos conseguir mudar um dia. Só espero que para isso não seja necessária crise tão grande como a da hiperinflação.

*Márcio Garcia é professor titular, Departamento de Economia da PUC-Rio, pesquisador afiliado da MIT Sloan School of Management, pesquisador sênior do CNPq e cientista Nosso Estado da FAPERJ.

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