O Globo
São os parlamentares que controlam a bola, o
campo e, a despeito do STF, a prerrogativa de mudar as regras
A impotência do Poder Executivo federal é um
espectro que assombra o país. Não está circunscrita ao governo do presidente
Lula, que, sim, tem variadas e inegáveis fragilidades. Antes, refere-se a um
processo político de mudanças estruturais que alteraram e agravaram as relações
entre os Poderes no Brasil.
Regimes multipartidários exigem articulações
custosas; questões programáticas são negociadas; a concessão de espaços no
governo dá ao Legislativo poder e influência na elaboração e na gestão de
políticas públicas. No Congresso, os votos da maioria expressam um pacto
político. As tensões tendem ao equilíbrio.
A cultura patriarcal brasileira fortalece a figura do presidente da República, que, ao distribuir cargos e recursos, atrai partidos e forma maiorias. Essa arquitetura levou o Legislativo a aprovar leis alinhadas aos governos. O presidente implementava sua agenda e, disso, se fez quase tudo: do Plano Real à reeleição e ao Bolsa Família.
Parte da ciência política questionava a
qualidade das práticas: no Brasil, os acordos são menos programáticos que
fisiológicos. Liberando cargos, recursos públicos e ministérios de “porteira
fechada”, o Executivo sacramenta relações nem sempre transparentes. Sem
obrigatoriedade formal, verbas eram liberadas de modo estratégico e arbitrário.
E coercivo, é claro.
Na última década, governos de popularidade
declinante e politicamente inábeis cederam poder ao Legislativo. A
impositividade da liberação de emendas ao Orçamento federal deveria livrar
parlamentares da subserviência, garantindo as prerrogativas de fazer leis,
fiscalizar e negociar com o Executivo de modo republicano. Em tese, um avanço.
Na realidade, a verdade com seu dom de iludir. O poder de coerção mudou de
lado.
Escrevendo o roteiro do Brasil, o absurdo
piorou seu enredo: a imposição da liberação de emendas não deteve a voracidade
fisiológica. Ao contrário, deu-lhe maior apetite. Somada ao manancial de verbas
dos fundos partidário e eleitoral, e sem os constrangimentos de uma opinião
pública pouco efetiva, o resultado foi a licenciosidade.
A lógica do curral eleitoral alimentado pelas
emendas e a proteção das bolhas das redes sociais reelegem “vereadores
federais”; a paróquia se impõe ao país. A competição eleitoral não é
igualitária; os mandatos tendem à vitaliciedade. O baixo clero desapareceu
simplesmente porque não há alto clero; em questões federais, não há liderança.
Hoje, coagido é o Poder Executivo. Sombra
pálida do que foi, tornou-se dependente do Supremo Tribunal Federal na intenção
de limitar a ação das emendas. A confusão aumenta. Autor do conceito
“presidencialismo de coalizão”, o politólogo Sérgio Abranches chama o “governo
congressual” de “anomalia”. “Um país ingovernável”, diz. Sem visão de futuro,
um país sem agenda.
O problema do atual governo é menos a
inabilidade em lidar com o Parlamento, a incapacidade de gerar projetos e
explorar boas notícias — fatos — que a demora em se dar conta do incontornável
das circunstâncias. Dependente do antigo carisma do presidente da República, o
governo não tensiona, nem politiza; não supera a questão.
Impondo seus interesses, o Congresso desgasta
e humilha o Executivo, a quem cabe responder. Engano crer que mudança de nomes
resolva, chame-se o presidente Luiz, Jair, Tarcísio, Ronaldo, Fernando ou
Eduardo; Michelle ou Rosângela. Pedir a Deus sem saber por que é pobreza de
espírito.
É improvável que a eleição legislativa renove
mentalidades e personagens; o jogo permanecerá o mesmo. Desinformado, o eleitor
carrega senso comum e raiva como maus conselheiros. São os parlamentares que
controlam a bola, o campo e, a despeito do STF, a prerrogativa de mudar as
regras. Espalhado por estados e prefeituras, o espectro tornará pior o que já é
muito ruim.
*Carlos Melo, cientista político, é professor
senior fellow do Insper
Nenhum comentário:
Postar um comentário