Valor Econômico
Embaixador Marcos Azambuja, recentemente
falecido, alertou para a magnitude potencial do desenvolvimento da Inteligência
Artificial sem nenhuma moderação
Certa vez, ao fim de uma entrevista em que analisava os primeiros cem dias do terceiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o experiente embaixador Marcos Azambuja chamou a atenção deste repórter para uma notícia recente que, na sua opinião, deveria ser lida como um marco de grandes proporções. Dias antes, centenas de especialistas haviam assinado uma carta apelando para uma pausa de pelo menos seis meses na pesquisa sobre inteligências artificiais (IAs) mais potentes, alertando para os “profundos riscos para a humanidade”.
Especialistas declaravam que o
desenvolvimento da IA avançada poderia representar uma mudança profunda na
história da vida na Terra e, portanto, deveria ser planejada e gerenciada com
cuidado e recursos proporcionais. Diante da constatação de que essas medidas
preventivas não estavam sendo adotadas, o alerta ia além: nos meses anteriores,
os laboratórios de IA tinham empreendido uma corrida para desenvolver e
implementar modelos digitais cada vez mais poderosos que ninguém podia
entender, prever ou controlar de forma confiável. Nem mesmo seus criadores.
Em seus longos anos de estudos, comentou
Azambuja, apenas dois momentos da História seriam comparáveis à manifestação
desses especialistas.
O primeiro foi quando um eminente integrante
da Igreja pediu que as potências da época não se aventurassem pelos mares, pois
era impossível prever aonde chegariam as embarcações e como ficaria a
humanidade depois que os exploradores desembarcassem. E emendou: o outro
momento se deu com a oposição de renomados cientistas americanos ao uso da
bomba atômica contra o Japão, após eles mesmos terem instado o governo dos
Estados Unidos a desenvolver armas de destruição em massa devido ao receio de
que os países integrantes do Eixo o fizessem antes e atacassem os EUA. Sem o
risco iminente, argumentavam, o comandante em chefe das Forças Armadas deveria
reconsiderar os bombardeios.
Apesar dos apelos, as potências europeias
desbravaram novos mares e as grandes navegações mudaram, de fato, a História.
Os cientistas americanos tampouco foram bem sucedidos no intuito de impedir os
ataques a Hiroshima e Nagasaki. E o mesmo está ocorrendo, agora, com o
desenvolvimento da Inteligência Artificial: a desenfreada corrida entre as
companhias do setor continua, com desdobramentos na geopolítica, em um momento
de crescente rivalidade entre Estados Unidos e China.
Um dos mais destacados representantes da
chancelaria brasileira, Azambuja lamentavelmente nos deixou na quarta-feira
(28). Mas seu alerta sobre a inteligência artificial se faz presente.
Exatamente uma semana antes da sua morte, o
vice-presidente americano, J.D. Vance, descreveu o desenvolvimento da IA como
uma “corrida armamentista” com os chineses. Para ele, pausar os avanços por
preocupações com a segurança da IA seria como abrir um flanco para que os EUA
sucumbissem a uma IA mediada pela República Popular da China. Em paralelo,
executivos de grandes empresas do setor passaram a argumentar que o nível de
rigidez da regulamentação americana seria determinante para a manutenção da
hegemonia global dos EUA. Os controles de vendas de semicondutores para a China
também fazem parte dessa estratégia.
Na China, o desenvolvimento da IA também é
tratado no contexto do tenso momento das relações internacionais. Autoridades
chinesas não escondem a satisfação, por exemplo, ao contar como um prodígio da
tecnologia e das finanças criou a startup DeepSeek e assustou grandes empresas
do Vale do Silício, ao desenvolver um aplicativo de IA gratuito com capacidades
semelhantes aos programas pagos de seus concorrentes. Cada vez mais os chineses
têm pensado nas aplicações práticas da inteligência artificial, como impulsionar
o crescimento econômico e o desenvolvimento industrial do país, em vez de
replicar uma visão utópica e conceitual da IA muitas vezes vistas entre líderes
do Ocidente.
No entanto, este é um debate que ainda
precisa ganhar tração no Brasil. Na semana passada, a Câmara dos Deputados
conheceu o plano de trabalho do relator da matéria na Casa, o deputado
Aguinaldo Ribeiro (PP-PB). A intenção do parlamentar é conduzir até setembro
uma série de audiências públicas, que serão seguidas à realização de seminários
regionais e um evento internacional. Neste último caso, aliás, o objetivo é
ouvir representantes do Ministério das Relações Exteriores, da União Europeia,
EUA, China, Reino Unido, Coreia do Sul e Índia. O texto deve retornar ao Senado
no fim do ano, se de fato aprovado pelos deputados em dezembro. Há então o
risco de o debate ficar travado devido à disputa eleitoral, o que gera
preocupação.
Governança e cooperação no âmbito da
inteligência artificial também se tornaram temas prioritários da presidência
brasileira do Brics, algo observado de perto por americanos e alguns países
europeus. O desafio do Brasil é formular uma proposta que garanta os direitos
dos cidadãos e dos produtores do conteúdo utilizado para educar os modelos de
IA, dando espaço para a inovação e garantindo a supervisão do Estado em relação
aos usos críticos da tecnologia. Isso tudo com um texto que se mostre
resistente ao tempo e a um ambiente de grande rivalidade entre China e EUA. Ou
ainda, como apontou Azambuja, que muda com muita rapidez.
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