Folha de S. Paulo
A revanche trumpista ameaça liberdades em
nome da luta contra o império do politicamente correto
No confronto entre Donald Trump e Harvard não
há escolha difícil para quem leva a sério os valores da democracia liberal.
Fora os trumpistas e a extrema direita mundial —que já é gente à beça—,
qualquer pessoa esclarecida reconhece que a investida atinge em cheio a
liberdade de expressão, o pluralismo político e ideológico, o pensamento
crítico e a autolimitação do poder, inclusive moral.
No entanto, a leitura "a barbárie ataca, o esclarecimento se defende" é simplória demais. A operação em curso não é apenas mais um episódio da série "a elite contra-ataca". Trata-se, antes, do ensaio de algo que, se ou quando a extrema direita voltar ao poder no Brasil, acontecerá aqui com método, apoio popular e espírito de revanche.
Harvard é uma instituição central da elite
americana e símbolo da autoridade moral de um modelo de sociedade cosmopolita,
multicultural e progressista. Representa uma elite que, além de se
autolegitimar moralmente, reivindica o direito de estabelecer o que pode ou não
ser dito, escrito e ensinado no espaço público. Para o populismo trumpista,
Harvard não é apenas uma universidade: é o núcleo simbólico de um projeto
ideológico hegemônico que precisa ser desacreditado —e, se possível,
neutralizado.
Mas Trump não arriscaria um enfrentamento tão
extremo se não tivesse as costas quentes. Uma parcela expressiva da opinião
pública americana compartilha a percepção de que as universidades foram
capturadas por militantes progressistas e transformadas em bastiões de
ortodoxia ideológica. Esse sentimento não é novo, mas ganhou força nas últimas
duas décadas, impulsionado por três movimentos principais.
Primeiro, a politização crescente do ambiente
universitário, em que professores e alunos são, antes de tudo, militantes de
agendas políticas e morais. Segundo, a homogeneização ideológica de
departamentos e cursos, com espaço cada vez mais reduzido para vozes
dissonantes ou posições não alinhadas ao progressismo. Terceiro, a adoção de
critérios morais —e não de mérito acadêmico— na contratação de docentes,
seleção de alunos e definição de currículos, o que tende a excluir quem não
compartilha integralmente dos valores identitários em vigor.
Hoje, conservadores no meio universitário
relatam censura informal, silenciamento e punições simbólicas. Departamentos
impõem conteúdos e linguagens com forte carga normativa, sob justificativas
como "educação antirracista" ou "formação de cidadãos
críticos". Críticas ponderadas a esse estado de coisas são frequentemente
ignoradas ou rotuladas como reacionárias, colonialistas ou transfóbicas. É esse
campo minado que Trump explora com cálculo e maestria.
Sua ofensiva contra Harvard tem valor
estratégico: não visa destruir as universidades, mas, supostamente, impedir que
sigam atuando como reprodutoras de um padrão ideológico hegemônico. Para seus
apoiadores, Trump não ataca a ciência ou o ensino —ao contrário, põe finalmente
um freio à "insanidade ideológica woke", cortando o financiamento
público que a sustenta.
Esse ataque, contudo, não corrige o desvio
—apenas inverte a direção do mesmo erro. O trumpismo enfrenta o autoritarismo
identitário com mais autoritarismo, adotando os mesmos métodos e pressupostos.
Ambos os lados recorrem à censura e à punição moral sumária, fazendo da
etiquetagem o principal instrumento de exclusão política. Os identitários
rotulam seus críticos como racistas, transfóbicos, misóginos ou colonialistas;
os trumpistas, por sua vez, classificam-nos como terroristas, antiamericanos ou
antissemitas. Em ambos os casos, a acusação funciona como sentença —não como
hipótese.
A liberdade de expressão, para ambos os
campos, só vale para quem professa a fé correta. Os identitários a restringem
em nome da segurança emocional e da proteção de subjetividades vulneráveis; os
trumpistas, em nome da segurança nacional ou dos valores americanos.
Trump pode até mirar no identitarismo, mas o
que atinge, de fato, são a autonomia universitária, a liberdade de cátedra, o
dissenso legítimo e a independência política dos indivíduos. O trumpismo não
pretende reconstruir nem pluralizar: quer retaliar. E, nesse aspecto, não
difere essencialmente daquilo que condena.
Essa guerra cultural travada entre doutrinas
iliberais tem uma única vítima real: a democracia liberal. Perdem o debate
racional, o convívio com a diferença e o esforço coletivo por uma esfera
pública aberta. Ganham apenas os que vivem de alimentar o conflito —e que
precisam, a qualquer custo, que ele nunca termine.
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