Termômetro: Episódio deixa claro que o Estado brasileiro não está preparado para lidar com as demandas de uma sociedade em franca transformação.
O Rio de Janeiro tem 16.550 bombeiros. O salário mensal da maioria deles não ultrapassa os R$ 1.034. Isso significa que fazem parte da classe C, mas correm o perigo de cair em breve para a classe D. Esse risco não existe para o bombeiro de São Paulo. Há nesse Estado 10.025 bombeiros, que têm uma renda média mensal de R$ 1.830. Os bombeiros de São Paulo fazem parte da classe B.
Há o argumento falacioso de que o Rio de Janeiro tem mais bombeiros que São Paulo por conta das praias. A falácia é rapidamente demonstrada por meio de alguns números. São Paulo não tem praias em cidades tão turísticas e densamente povoadas como o Rio de Janeiro. Há as praias do Guarujá, Santos, Praia Grande e do Litoral Norte. Podemos considerar que essas praias demandam o mesmo contingente de salva-vidas que as praias do Rio que estão fora da capital. Assim sendo, os 6.525 bombeiros que o Rio de Janeiro tem a mais do que São Paulo se justificariam por conta das praias do Recreio, Barra da Tijuca, São Conrado, Leblon, Ipanema e Copacabana (não imagino que haja necessidade de salva-vidas nas praias que ficam dentro da Baía de Guanabara).
Há aproximadamente 30 quilômetros de praia entre o Recreio e Copacabana. O Google Earth permite fazer essa medição com bastante precisão, além de descontar as regiões do elevado do Joá, do morro do Vidigal e outras áreas nas quais não há banhistas. Sendo assim, haveria no Rio 6.525 bombeiros para 30 quilômetros de praia, o que resulta em 217 salva-vidas por quilômetro. Como Leblon e Ipanema juntas têm por vota de 3,5 quilômetros, devemos esperar ver em suas areias 761 salva-vidas, na chuva ou no sol, com ou sem ressaca, dias de final de semana ou dias de semana. Eis a falácia.Outra evidência empírica que derruba o argumento do litoral é mais simples ainda. Tomem-se as estatísticas brasileiras de mortes por afogamento e ver-se-á que são muito mais comuns em rios e lagos do que em praias. Assim, os Estados amazônicos deveriam ter mais bombeiros do que o Rio de Janeiro. Aliás, voltando à comparação entre os dois Estados, São Paulo tem hoje 2,4 bombeiros para cada 10.000 habitantes e o Rio de Janeiro tem 10,3.
Listei ao menos três argumentos técnicos (salva-vidas por quilometragem de praia, afogamentos em lagos e rios e bombeiros per capita) que, se considerados em uma decisão de política pública, não levariam o Estado do Rio de Janeiro a ter mais de 16.000 bombeiros. Há bombeiros demais que ganham de menos. Podemos ir além e comparar o Brasil com o Chile. Lá há terremotos e, mesmo assim, a atividade de bombeiro é voluntária. É possível constatar a importância do trabalho voluntário quando há tragédias - como a que aconteceu na região serrana do Rio de Janeiro. O contingente de pessoas e de recursos mobilizados voluntariamente para atacar os resultados de uma tragédia são, muitas vezes, mais relevantes do que o trabalho de profissionais regularmente pagos para essa finalidade.
O que o episódio dos bombeiros do Rio de Janeiro revela é quão despreparado está o Estado brasileiro para lidar com a nova sociedade que vem surgindo. Como há mais de 16 mil bombeiros, os salários são muito baixos. O próprio governador, ao tratar da dificuldade de dar um aumento salarial expressivo, utilizou esse argumento. Vamos ao óbvio: é melhor ter menos bombeiros com salários mais altos do que ter mais bombeiros com salários baixos. A natureza da atividade dos bombeiros exige que seja desenvolvido um bom gerenciamento de efetivo: não é preciso que haja um batalhão em todos os lugares e tem que ser fácil mobilizá-los e movimentá-los no caso de contingências. Além disso, todos os argumentos técnicos que dizem respeito ao bem-estar da população - tenho em mente, em particular, o fato de as mortes por afogamento serem em sua maioria nos rios e lagos - precisam ser considerados quando se gerencia um serviço dessa importância.
O salário de pouco mais de R$ 1.000 torna a carreira muito pouco atraente, em particular agora que a classe C emergiu e ficará cada vez mais forte e numerosa. No Rio de Janeiro, tomando-se somente o salário corrente, é melhor ser motorista particular do que bombeiro. Trata-se de um fenômeno geral que vai muito além dos bombeiros da cidade. O que esse episódio fez foi somente mostrar com crueza a nova realidade de nosso setor público em face das demandas de uma nova sociedade.
No Brasil que está desaparecendo as famílias eram numerosas e passavam a vida inteira morando relativamente perto, a mobilidade geográfica era muito pequena, quase nula. Isso tinha uma implicação muito importante para a vida das pessoas: a família e a comunidade eram as principais instituições de proteção social, psicológica, financeira etc. A família, a comunidade e a igreja. No novo Brasil, as famílias são pequenas e se concebem mais como família nuclear do que agregada. Adicionalmente, a mobilidade aumentou muito. Não apenas a que ocorre entre Estados, mas também entre municípios. Como querer progredir na vida vem se tornando um valor mais forte, as pessoas têm ficado mais predispostas a se mudar para conseguir um emprego melhor. Não só diminuiu o apego à comunidade, mas também à religião. Trata-se de um processo lento e irreversível. Vem aumentando no Brasil o número de pessoas que se declaram sem religião. O resultado é que a proteção social antes oferecida pela igreja também vem perdendo força.
Surge, então, a necessidade de que as instituições seculares funcionem adequadamente. Serão elas que vão proteger o brasileiro moderno: a Justiça, a polícia, os bombeiros, o setor público etc. Aumentará muito a demanda por serviços públicos de qualidade. Isso significa que será preciso haver bons funcionários públicos, pessoas que executem com competência o seu trabalho e que sejam adequadamente pagas por isso. Pode ser, portanto, que o melhor seja ter um contingente de 5.000 bombeiros muito bem pagos, adicionando-se a isso outro contingente, a la Chile, por meio do trabalho voluntário. A ação voluntária tem sido fundamental na resolução ou amenização de vários problemas que temos: mutirões para construir casas populares, mutirões para resolver problemas escolares e, mais recentemente, todas as ações da sociedade que vem contribuindo para combater a dengue.
Quando consideramos a grande força associativa da sociedade brasileira fica patente a falta de criatividade de nossos políticos. A maioria deles pensa que, para se ter um sistema de combate a incêndio eficiente, é preciso ter um grande efetivo de bombeiros exclusivamente contratados para essa finalidade. Pode ser que o mesmo resultado seja alcançado, com custos mais baixos para a sociedade, em parceria com os movimentos associativos. Aliás, esse pode vir a ser um caminho criativo e eficaz para muitos de nossos problemas.
Há vários elementos que mostram a modernização de nossa sociedade: urbanização, aumento do poder aquisitivo, mentalidade crescentemente secularizada, maior pluralismo. O setor público não acompanhou essa modernização. As pessoas mais pobres, por exemplo, demandam tratamento digno por parte do sistema de saúde. Trata-se de uma exigência exclusivamente moderna. Tratamento digno é sinônimo de tratamento igualitário. Os pobres brasileiros sabem que os médicos, de modo geral, tratam os pobres de um jeito e os não pobres de outra maneira bem mais atenciosa. Há a demanda por resultado, eficiência e tratamento igualitário. Mas o setor público não é capaz de atender a tais pressões.
Há sinais de que a presidente Dilma esteja ciente desse problema. Exatamente por isso, criou a Câmara de Gestão e Planejamento, sob a liderança do empresário gaúcho Jorge Gerdau. O objetivo dessa Câmara é elaborar e propor projetos de modernização do setor público. A grande dificuldade para aprovar e levar a bom termo qualquer reforma administrativa é que o apoio político precisa ser construído contra o interesse inercial dos políticos. A grande maioria dos administradores eleitos funciona de acordo com o piloto automático que indica que mais bombeiros é melhor do que menos. Essa lógica precisa ser subvertida. Isso demandará um grande esforço político da presidente. Não se trata de um incêndio a ser debelado. Se fosse isso, ela poderia ter a ajuda dos 16 mil bombeiros do Rio de Janeiro. Trata-se, sim, de uma doença que se instalou de forma crônica em nosso meio político e administrativo. É uma boa briga. Se Dilma enfrentá-la e vencer entrará para a história.
Alberto Carlos Almeida, sociólogo e professor universitário, é autor de "A Cabeça do Brasileiro" e "O Dedo na Ferida: Menos Imposto, Mais Consumo".
FONTE: VALOR ECONÔMICO
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