- Folha de S. Paulo
Crivella quis insuflar uma guerra ideológica artificial da qual possa ser protagonista
A cena de fiscais inspecionando a Bienal do Livro no Rio de Janeiro à procura de livros ofensivos à pureza das crianças é um emblema lamentável do momento atual: perversão das instituições e a violação de direitos básicos a serviço da demagogia oportunista. E a reprodução maciça da cena do beijo gay da HQ proscrita, em jornais, na televisão e por toda a internet, é o símbolo da reação —bem-humorada, destemida— da sociedade civil à degeneração moral que vem da política.
Não duvido que o prefeito do Rio seja homofóbico de verdade. Duvido, aí sim, que essa operação em defesa "das crianças" tenha sido sincera, isto é, fruto do desejo real de preservá-las daquilo que ele considera um pecado. Em primeiro lugar porque, como era mais do que previsível, a tentativa de censura a uma cena de beijo serviu apenas para divulgá-la para um número incomparavelmente maior de pessoas (inclusive crianças) do que a revista jamais teria alcançado por conta própria. E em segundo pela total irrelevância da medida: há tantos beijos gays diariamente expostos a crianças no Rio de Janeiro... Nos livros, nas praias, nas TVs, nos cinemas. Em mais de dois anos de mandato, Crivella jamais esboçou um plano para reduzir essa exposição. Conclui-se, portanto, que isso não é seu objetivo.
Ao censurar uma revista escolhida de forma quase aleatória, portanto, sua intenção era outra: insuflar uma guerra ideológica artificial na qual possa ser um protagonista. Ser visto como um evangélico fundamentalista piora a imagem de Crivella junto a um eleitorado progressista, que dificilmente votaria nele. Junto ao eleitorado mais reacionário, pode pegar bem. Mesmo os que não têm pessoalmente nada contra o beijo gay gostam de dar um golpe imaginário nos progressistas, nos "gayzistas" (ou seja, no movimento organizado em defesa de LGBTs) etc.
No mínimo, gera uma polêmica que divide a sociedade. E é melhor, politicamente, ser amado por uns e odiado por outros do que ser universalmente considerado um zero à esquerda, prefeito inútil que, em sua incompetência, é um dos muitos responsáveis pela falência geral do Rio de Janeiro. Um líder mau, que inspire medo, é mais elegível do que um apenas ruim.
Vivemos uma escalada do puritanismo. Representantes competem entre si, superando-se uns aos outros para ver quem explora melhor os preconceitos do eleitorado. Em 2017, o MBL surfou numa cruzada contra a exposição Queermuseu. (Cabe notar que, hoje, o MBL reconhece o erro de seu comportamento passado.) Na campanha presidencial, a fake news do "kit gay" foi usada por Bolsonaro para alavancar sua candidatura. Na semana passada, o governador de São Paulo, João Doria, recolheu apostila escolar (destinada a aluninhos inocentes, de apenas 14 anos) por abordar a relação entre sexo e gênero.
Num mundo em que a tecnologia burla facilmente qualquer proibição, as tentativas de censura se tornam mais inócuas do que nunca. Os políticos sabem disso, e o único motivo pelo qual continuam a investida é para explorar a credulidade das massas. Usar essa estratégia, intensificando o medo e o ódio na população, é uma mostra não só de ignorância e preconceito como do completo vazio de propostas e realizações, e um índice de sua disposição de afundar o país para que possam sair por cima. Por trás do puritanismo santarrão tem sempre um safadinho querendo nos usar de trampolim.
*Joel Pinheiro da Fonseca, economista, mestre em filosofia pela USP.
Nenhum comentário:
Postar um comentário