- Correio Braziliense, 11 de agosto de 2020
Dos grandes autores
lembramos o que escreveram, dos maiores adotamos o pensamento, mesmo sem saber
o nome. Nós pensamos com base nas ideias de Baruch de Spinoza, Erasmo de
Rotterdam, Adam Smith, René Descartes, Jeremy Bentham, David Hume, Aristóteles,
John Maynard Keynes, Hannah Arendt e outros que romperam posições do passado e
inventaram novas formas de entender a realidade.
Ainda quem nunca ouviu falar
neles, pensa e age em função das ideias que eles construíram. Alguns
brasileiros nos explicaram “de onde vem”, “como é”, “para onde deve ir” o
Brasil. Entre outros, é possível citar Joaquim Nabuco, Gilberto Freyre, Caio
Prado, Sergio Buarque de Holanda, Josué de Castro, Celso Furtado, Darcy
Ribeiro, Anísio Teixeira e Paulo Freire. Cada um teve sua influência na
formação da mente brasileira: como nós entendemos nosso país e o mundo ao
redor.
Desses, Celso Furtado tem
influência decisiva para explicar o “de onde viemos”, “por que somos
subdesenvolvidos”, quais os “entraves ao nosso desenvolvimento”, “como nos
desenvolvermos”; ele também nos alertou para os riscos do progresso.
Antes do livro Formação Econômica do Brasil, víamos a
nossa história como uma sucessão de fatos, especialmente políticos. Graças a
Celso Furtado passamos a entender como a história avançou: a lógica e as forças
que nos empurraram. Graças também a ele, entendemos porque esbarramos, em vez
de avançar. Seus livros Desenvolvimento e
Subdesenvolvimento, Teoria e Política
do Desenvolvimento Econômico e Dialética
do Desenvolvimento são básicos para entender como certas economias se
desenvolvem e porque outras ficam estagnadas.
Mas ele não foi apenas
analista, foi também formulador de caminhos. Devemos a ele os documentos
básicos de estratégias para o desenvolvimento do Brasil, como o “Plano
Trienal”, e para superar a tragédia da pobreza e da desigualdade regional. Foi
formulador da Sudene (Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste) e homem
de ação. A engenharia política para aprovar no Congresso as leis que serviram
de base à criação da Sudene e dos instrumentos de incentivos fiscais foi uma
obra de genialidade conceitual e de articulação política; tal como Nabuco nos
dias de maio de 1888 para aprovar a Lei Áurea.
Passados alguns anos, foi Celso
Furtado quem, no seu livro O Mito do
Desenvolvimento, nos trouxe a percepção dos limites do desenvolvimento,
tanto quanto Nabuco nos lembrou que a Abolição não se completaria sem reforma
agrária e sem educação.
Por tudo isso, cem anos
depois de seu nascimento, o pensamento e o exemplo de Celso Furtado estão
vivos, nas lembranças e homenagens que os historiadores, economistas e
políticos fazem à sua obra. Vivo também em milhões de brasileiros que, sem
saber, usam conceitos e palavras que ele criou, sonham para o Nordeste e para o
Brasil rumos que ele definiu, temem resultados negativos para os quais ele
alertou.
Raros intelectuais e
homenageados são lembrados tantos anos depois de sua obra, por quem o estudou e
por quem pensa como ele ensinou, mesmo sem conhecer sua obra. A maior homenagem
a ele não é, entretanto, lembrar a importância de sua obra, mas ter a
consciência de como ele nos faz falta em um momento em que o Brasil vive em
transe, não em transição, sem coesão, nem rumo.
Cometemos muitos equívocos
nas duas décadas sem Celso. Uma das maiores foi burocratizarmos e amarrarmos o
pensamento. Burocratizamos nas carreiras universitárias e amarramos em siglas
partidárias. Deixamos de usar plenamente a liberdade criadora, paramos de
ousar, nos apegamos às ideias do passado como se fossem camisas de força de uma
lucidez superada pela realidade. Ficamos críticos ou bajuladores, não analistas
e intérpretes inovadores.
A maior lição de Celso
Furtado foi seu exemplo de pensar com rigor analítico e com liberdade
imaginativa, sem amarras, sem líderes e sem siglas partidárias. Ninguém amarrou
o pensamento de Celso Furtado, ninguém tolheu sua imaginação e todos reconhecem
seu rigor. É nisso que precisamos seguir avançando no que ele formulou. Seu pensamento um dia evoluirá graças aos
que seguirem seu exemplo, tanto quanto ele fez avançar o pensamento de seus mestres.
Olhando para sua própria
obra e para os desafios de hoje, a maior homenagem ao Celso, nos seus cem anos,
é agradecer pelos pilares intelectuais que ele nos deu nas ideias e no caráter,
e pensar novas ideias e novos instrumentos para enfrentar os novos desafios.
Agir como ele agiria: pensando além do que ele nos ensinou.
*Professor Emérito da
Universidade de Brasília (UnB)
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