quinta-feira, 11 de agosto de 2022

Mônica Sodré* - Bolsonaro e a (não) cartilha de Trump

O Globo

Se nos EUA foi possível colocar fim à violência e restabelecer a normalidade democrática, isso também será viável no Brasil?

À medida que se multiplicam os ataques do presidente brasileiro às instituições e à segurança do processo eleitoral, ganham corpo comparações entre suas ações e as do ex-presidente dos EUA Donald Trump. As analogias costumam demarcar semelhanças, como se o uso prévio da cartilha pudesse antecipar resultados. Se no desfecho americano foi possível colocar fim à violência e restabelecer a normalidade democrática, isso também será possível no Brasil? É necessário, para dar a resposta, analisar ao menos seis elementos que marcam diferenças importantes.

A relação com o Judiciário é um. Nos EUA, os tribunais deram um recado claro a Trump, negando 61 dos 62 processos para anular resultados eleitorais. Há um segundo: nunca o ex-presidente americano atacou e tentou intimidar os juízes da Suprema Corte, como vemos aqui. A despeito das declarações contrárias e da tentativa de desqualificar decisões, dirigidas tanto a juízes quanto ao Tribunal, nunca se ameaçou não cumprir uma ordem judicial. Aqui as ameaças se avolumam.

Na relação com as Forças Armadas, o ex-presidente não foi capaz de manter a avaliação favorável e apoio dos militares. No Brasil, falta clareza sobre essa posição. Se de um lado o pedido de renúncia coletiva dos comandantes, em 2021, pode ser lido como resistência, de outro há mais de 6 mil militares ocupando cargos na administração pública federal. E parte do grupo continua reiteradamente a questionar a integridade do processo eleitoral.

Um terceiro elemento é a maneira de realizar eleições. Nos EUA, não existe legislação federal a regular as eleições, nem há uma autoridade nacional controladora, papel do nosso Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Da maneira de votar à contagem dos votos, cada um dos estados tem autonomia. Assim, Trump conseguiu levantar suspeitas em estados-chave, mas foi impossível desacreditar todo o processo, com 50 eleições “independentes”. Aqui, segue-se a lógica de descrédito ao sistema e ao TSE, espinha dorsal do processo eleitoral.

A postura de pessoas-chave é outro fator. Não somente o dever institucional, mas valores orientaram o comportamento de alguns indivíduos. Exemplos são o vice Mike Pence e o motorista que não cedeu lugar a Trump para ir ao Capitólio, no caso americano. Aqui, um dos episódios de contenção coube ao presidente da Câmara, deputado Arthur Lira, que enterrou a discussão sobre voto impresso, mas escolhe o silêncio diante dos ataques que se seguem.

Um quinto ponto diz respeito ao direcionamento da violência. Nos EUA, os ataques foram dirigidos às instituições. A invasão ao Capitólio foi um ataque ao símbolo da democracia, o Parlamento, e não um embate entre pessoas com posições diferentes. No Brasil, a lógica tem sido a eliminação dos opositores. Estamos muito além dos ataques às instituições, que seguem concentrados no Judiciário.

Por fim, as alegações de fraude eleitoral pelo ex-presidente Trump, apesar da longevidade, foram sempre uma questão doméstica. Aqui, ao convocar embaixadores para expor o país a um discurso baseado em mentiras acerca do processo eleitoral, o presidente tornou o tema um assunto de política externa, buscando apoio internacional para a não aceitação dos resultados. Ao fazê-lo com a presença dos ministros da Controladoria-Geral da União (CGU) e da Advocacia-Geral da União (AGU), demonstrou respaldo de duas das principais estruturas do Estado.

Foi José Saramago quem disse, em seu “Ensaio sobre a cegueira”, que a pior cegueira é a mental, por nos impedir de reconhecer o que teremos pela frente. Que as semelhanças aparentes não nos ceguem: parece igual, mas não é. Que a sociedade civil, lideranças políticas, empresariais, partidos políticos, tribunais, academia — todos os democratas — enxerguem claramente e se unam para enfrentar o que temos diante de nós.

*Mônica Sodré é cientista política e diretora executiva da Rede de Ação Política pela Sustentabilidade (Raps)

Um comentário:

Anônimo disse...

A colunista tem razão! Há algumas semelhanças, mas também grandes diferenças! Bolsonaro foi mau militar, inclusive punido e expulso, mas tem apoio de parte da cúpula militar. E Trump não foi considerado genocida, o que mostra que Bolsonaro é muito mais perigoso e violento que o seu ídolo e patrão!