DEU NA FOLHA DE S. PAULO
O lulismo é um fenômeno recente. Mais novo que o governo de Luiz Inácio Lula da Silva. Em 2002, quando ele se elegeu pela primeira vez, houve, na Folha, apenas quatro menções à expressão "lulismo" nas páginas do jornal. Em 2006, ano da reeleição, a palavra foi escrita 55 vezes. No ano passado, ela apareceu em 65 ocasiões. Neste ano, outras 128 até o final de novembro.
O lulismo está relacionado à consagração popular do presidente no segundo mandato. Mas vai além dela. Há quem o veja como sintoma de uma regressão política. Há quem o compare, a partir da empatia e do vínculo direto com as massas, ao getulismo -Vargas era o "pai do pobres". Isso aproximaria o lulismo da tradição populista.
Há, no entanto, quem discorde tanto da aproximação com Getúlio como do enquadramento populista. O significado político e o legado histórico do lulismo estão abertos e em disputa.
O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, sociólogo de formação, vê diferenças importantes entre Getúlio e Lula: "O Lula passou a se dirigir aos pobres, mais do que aos trabalhadores organizados. Há nele um componente messiânico, um traço de Antonio Conselheiro, mais do que de Getúlio, que era um membro das elites dominantes e incorporou os trabalhadores à política por meio de sindicatos atrelados ao Estado, num contexto de expansão do emprego industrial".
Segundo FHC, "classe social" é uma categoria que "não entra na cabeça" de Lula: "O negócio dele é a mesa onde exercita a conciliação geral das classes. Para ele, todo mundo é companheiro".
O cientista político Cláudio Gonçalves Couto, professor da FGV-SP, recusa a caracterização de Lula como político populista. Diz que o populismo não se define pelo apego à demagogia nem apenas pela liderança carismática: "A marca distintiva do populismo é o seu anti-institucionalismo. E Getúlio governou, de fato, por cima das instituições, destruindo várias e criando outras tantas, que formaram o arcabouço do Estado moderno e da burocracia pública brasileira".
Lula, lembra Couto, cometeu pecadilhos, como afrontar a legislação eleitoral, mas "nunca colocou sua liderança pessoal acima e à frente das instituições".
A discussão sobre o lulismo foi levada a um novo patamar pelo cientista político André Singer. Porta-voz de Lula no primeiro mandato e hoje professor da USP, ele publicou no final de 2009, na revista "Novos Estudos", do Cebrap, o ensaio "Raízes Sociais e Ideológicas do Lulismo", que logo ficou famoso.
Ali, identifica, durante a campanha de 2006, um deslocamento do eleitorado de baixíssima renda na direção de Lula, ao mesmo tempo em que setores das classes médias, historicamente simpáticos ao PT, dele se afastavam, impactados pelo escândalo do mensalão, que eclodiu em meados de 2005.
São dois, portanto, os fenômenos do que Singer chama de realinhamento eleitoral: a mudança da base social que vota em Lula e a desconexão, em 2006, entre as bases do lulismo e do petismo.
Se é verdade que o presidente, "só depois de assumir o governo, obteve a adesão do segmento de classe que buscava desde 1989" (quando Collor conquistou os "descamisados"), parece menos conclusiva a tese de que Lula e PT representam hoje segmentos sociais distintos.
Couto concorda com a análise de Singer, mas acredita que as bases do lulismo e do petismo tendem a se aproximar e mesmo a se confundir: "Isso em parte já aconteceu agora, na eleição de Dilma. E é o petismo que vai ser avaliado daqui em diante".
O lulismo, de qualquer forma, surge em 2006 sob os escombros do mensalão, que dizimou a cúpula do PT, lastreado no povão, como expressão política do que o economista Marcelo Neri, da FGV-RJ, chamou de "Real de Lula" -ou seja, a redução em torno de 20% das pessoas abaixo da linha da pobreza entre 2003-2005, índice semelhante ao obtido por FHC nos primeiros anos do Real.
As políticas de inclusão social (Bolsa Família, aumento do salário mínimo e expansão do crédito, além do avanço do emprego formal) convivem, sob Lula, com a defesa ortodoxa da estabilidade econômica, plataforma até então estranha ao PT. O lulismo, diz Singer, "uniu bandeiras que pareciam não combinar" ao "combater a desigualdade dentro da ordem".
Esse amálgama é o pulo do gato de Lula e corresponde, segundo o autor, a "nada menos que um completo programa de classe", a partir da construção de "uma substantiva política de promoção do mercado interno voltada aos menos favorecidos".
É claro que essa nova base social "lulista" se soma a setores organizados historicamente ligados ao PT, como o MST e as centrais sindicais, cooptados pelo governo pela transferência de recursos públicos em escala inédita.
Singer, em grande medida, escreve contra o diagnóstico de Francisco de Oliveira, sociólogo que se desligou do PT ainda no primeiro mandato e para quem o "lulismo é uma regressão política, a vanguarda do atraso e o atraso da vanguarda".
Em 2007, num artigo chamado "Hegemonia às Avessas", ele escreve que Lula "despolitiza a questão da pobreza e da desigualdade" e "funcionaliza a pobreza", transformando-as "em problema de administração".
Segundo Oliveira, o lulismo "não é nada parecido com qualquer das práticas de dominação exercidas ao longo da existência do Brasil", o que o tornaria especialmente nocivo para a esquerda.
Essa é uma visão que foi amplamente derrotada. Nas palavras de Cláudio Couto, "o maior legado do lulismo é um novo regime de políticas públicas voltadas à redução da pobreza".
Talvez fosse preciso acrescentar: e tê-lo feito sem contrariar os interesses dos mais ricos.
O lulismo é um fenômeno recente. Mais novo que o governo de Luiz Inácio Lula da Silva. Em 2002, quando ele se elegeu pela primeira vez, houve, na Folha, apenas quatro menções à expressão "lulismo" nas páginas do jornal. Em 2006, ano da reeleição, a palavra foi escrita 55 vezes. No ano passado, ela apareceu em 65 ocasiões. Neste ano, outras 128 até o final de novembro.
O lulismo está relacionado à consagração popular do presidente no segundo mandato. Mas vai além dela. Há quem o veja como sintoma de uma regressão política. Há quem o compare, a partir da empatia e do vínculo direto com as massas, ao getulismo -Vargas era o "pai do pobres". Isso aproximaria o lulismo da tradição populista.
Há, no entanto, quem discorde tanto da aproximação com Getúlio como do enquadramento populista. O significado político e o legado histórico do lulismo estão abertos e em disputa.
O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, sociólogo de formação, vê diferenças importantes entre Getúlio e Lula: "O Lula passou a se dirigir aos pobres, mais do que aos trabalhadores organizados. Há nele um componente messiânico, um traço de Antonio Conselheiro, mais do que de Getúlio, que era um membro das elites dominantes e incorporou os trabalhadores à política por meio de sindicatos atrelados ao Estado, num contexto de expansão do emprego industrial".
Segundo FHC, "classe social" é uma categoria que "não entra na cabeça" de Lula: "O negócio dele é a mesa onde exercita a conciliação geral das classes. Para ele, todo mundo é companheiro".
O cientista político Cláudio Gonçalves Couto, professor da FGV-SP, recusa a caracterização de Lula como político populista. Diz que o populismo não se define pelo apego à demagogia nem apenas pela liderança carismática: "A marca distintiva do populismo é o seu anti-institucionalismo. E Getúlio governou, de fato, por cima das instituições, destruindo várias e criando outras tantas, que formaram o arcabouço do Estado moderno e da burocracia pública brasileira".
Lula, lembra Couto, cometeu pecadilhos, como afrontar a legislação eleitoral, mas "nunca colocou sua liderança pessoal acima e à frente das instituições".
A discussão sobre o lulismo foi levada a um novo patamar pelo cientista político André Singer. Porta-voz de Lula no primeiro mandato e hoje professor da USP, ele publicou no final de 2009, na revista "Novos Estudos", do Cebrap, o ensaio "Raízes Sociais e Ideológicas do Lulismo", que logo ficou famoso.
Ali, identifica, durante a campanha de 2006, um deslocamento do eleitorado de baixíssima renda na direção de Lula, ao mesmo tempo em que setores das classes médias, historicamente simpáticos ao PT, dele se afastavam, impactados pelo escândalo do mensalão, que eclodiu em meados de 2005.
São dois, portanto, os fenômenos do que Singer chama de realinhamento eleitoral: a mudança da base social que vota em Lula e a desconexão, em 2006, entre as bases do lulismo e do petismo.
Se é verdade que o presidente, "só depois de assumir o governo, obteve a adesão do segmento de classe que buscava desde 1989" (quando Collor conquistou os "descamisados"), parece menos conclusiva a tese de que Lula e PT representam hoje segmentos sociais distintos.
Couto concorda com a análise de Singer, mas acredita que as bases do lulismo e do petismo tendem a se aproximar e mesmo a se confundir: "Isso em parte já aconteceu agora, na eleição de Dilma. E é o petismo que vai ser avaliado daqui em diante".
O lulismo, de qualquer forma, surge em 2006 sob os escombros do mensalão, que dizimou a cúpula do PT, lastreado no povão, como expressão política do que o economista Marcelo Neri, da FGV-RJ, chamou de "Real de Lula" -ou seja, a redução em torno de 20% das pessoas abaixo da linha da pobreza entre 2003-2005, índice semelhante ao obtido por FHC nos primeiros anos do Real.
As políticas de inclusão social (Bolsa Família, aumento do salário mínimo e expansão do crédito, além do avanço do emprego formal) convivem, sob Lula, com a defesa ortodoxa da estabilidade econômica, plataforma até então estranha ao PT. O lulismo, diz Singer, "uniu bandeiras que pareciam não combinar" ao "combater a desigualdade dentro da ordem".
Esse amálgama é o pulo do gato de Lula e corresponde, segundo o autor, a "nada menos que um completo programa de classe", a partir da construção de "uma substantiva política de promoção do mercado interno voltada aos menos favorecidos".
É claro que essa nova base social "lulista" se soma a setores organizados historicamente ligados ao PT, como o MST e as centrais sindicais, cooptados pelo governo pela transferência de recursos públicos em escala inédita.
Singer, em grande medida, escreve contra o diagnóstico de Francisco de Oliveira, sociólogo que se desligou do PT ainda no primeiro mandato e para quem o "lulismo é uma regressão política, a vanguarda do atraso e o atraso da vanguarda".
Em 2007, num artigo chamado "Hegemonia às Avessas", ele escreve que Lula "despolitiza a questão da pobreza e da desigualdade" e "funcionaliza a pobreza", transformando-as "em problema de administração".
Segundo Oliveira, o lulismo "não é nada parecido com qualquer das práticas de dominação exercidas ao longo da existência do Brasil", o que o tornaria especialmente nocivo para a esquerda.
Essa é uma visão que foi amplamente derrotada. Nas palavras de Cláudio Couto, "o maior legado do lulismo é um novo regime de políticas públicas voltadas à redução da pobreza".
Talvez fosse preciso acrescentar: e tê-lo feito sem contrariar os interesses dos mais ricos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário