Ao completar 80 anos, sociólogo faz balanço positivo da onda de protestos no país e critica o 'violento' modelo brasileiro de crescimento
Ricardo Mendonça
SÃO PAULO - Socialista inveterado, acadêmico prestigiado, parceiro rompido de Fernando Henrique Cardoso e Lula, o sociólogo Francisco de Oliveira completou 80 anos na última quinta sem qualquer sinal de afrouxamento da energia crítica.
Em entrevista em seu apartamento, em São Paulo, falou com entusiasmo dos protestos de rua ("a sociedade mostrou que é capaz ainda de se revoltar") e criticou as principais figuras da cena política.
A presidente Dilma Rousseff é uma "personagem trágica" que deu uma "resposta idiota" às manifestações de junho. Lula "está fazendo um trabalho sujo". Marina Silva é uma "freira trotskista". O Bolsa Família, "uma declaração de fracasso". E por aí vai.
Oliveira não teme expor suas posições ousadas. Uma delas é separar o Brasil para resolver a questão indígena: "Há um Estado indígena. Ninguém tem coragem de dizer".
Folha - Oitenta anos. Que tal?
Chico de Oliveira - Oscar Niemeyer disse que a velhice é uma merda. Não sou tão radical. Mas não tem essas bondades que se diz. A história de que se ganha em sabedoria é uma farsa. Não é bom envelhecer. As pessoas sábias deveriam morrer cedo [risos].
Antigamente era assim. Longevidade é uma novidade, né?
É recente mesmo. Não é façanha sua. É a economia que te leva até os 80. As condições de vida mudam, você não precisa de trabalho pesado. Quem condiciona tudo é o trabalho. E gente da minha classe social está apta a aproveitar essas benesses do desenvolvimento capitalista. Mas não é agradável. E não há solução. Você vai se matar para poder não cumprir os desígnios de sua classe social?
O senhor se surpreende aos 80. Em junho, falou do ineditismo dos protestos. Qual é o saldo?
Deu uma coisa ótima: a sociedade mostrou que é capaz ainda de se revoltar, ir para a rua. Não precisa resultado palpável. Assustaram os donos do poder, e isso foi ótimo. Eu falava inédito porque a sociedade brasileira é muito pacata. A violência é só pessoal, privada, o que é um horror. Quando vai para a violência pública, as coisas melhoram. Isso que interessa: um estado de ânimo da população que assuste os donos do poder.
Assustou mesmo?
Assustou. Foi mesmo inédito. Isso é bom para a sociedade. Não é bom para os donos do poder. Mas são eles que a gente deve assustar. Se puder, mais que assustar, derrubá-los do poder. Não acho que as manifestações tenham esse caráter. Mas regozijo-me porque foi manifestado o não conformismo.
Aí a presidente Dilma lançou a ideia de Constituinte para a reforma política. O que achou?
Eu achei idiota. Não gostaria de fazer uma avaliação precipitada do governo Dilma para não dar força à direita, que está em cima dela. Mas é uma resposta idiota. Ninguém resolve problema assim na Constituição.
O que teria sido adequado?
Reconhecer que o país está atravessando uma zona de extrema turbulência devido ao crescimento econômico. É o crescimento que cria a turbulência, não o contrário. Todos pensam que crescimento apazigua. Não é verdade. Ele exalta forças que não existiam. O capitalismo é um sistema violentíssimo. Os EUA, o paradigma, são uma sociedade extremamente violenta. O Brasil vive adormecido. De repente, o tipo de crescimento violento e tenso em pouco tempo quebra as amarras, e a violência vai para rua.
Mas Dilma é criticada pelo baixo crescimento.
Não é verdade. O país cresce de forma violentíssima nos últimos 20 anos. E é um crescimento diferenciado. Não dá mais para ser no campo. Agora é na cidade, com relações público-privadas diferentes. Se o Estado não tem políticas para tal, é melhor ficar calado do que dizer besteira.
E o que achou do papel dos governadores?
Esse [Geraldo] Alckmin é uma coisa... É bem o representante dessa política. Um ser anódino. Já o chamaram picolé de chuchu. Ele de fato não desperta paixões nem ódio. Em geral é assim. Não tem nenhum governador que inspire empolgação. Tudo conformado. E a imprensa tem um papel horroroso: o que for conformismo, exalta; o que for rebeldia, condena.
Que avaliação o senhor faz do movimento "black bloc"?
Boa avaliação. Se eles se constituem como novos sujeitos da ação social, é para saudar. Vamos ver se, com eles, a gente chacoalha essa sociedade conformista. Parece que tudo no Brasil vai bem. Não é verdade. Vai tudo mal. O Estado não age no sentido de antecipar-se à sociedade que está mudando rapidamente. E aí vem o Lula fazendo um trabalho sujo, aquietar aquilo que é revolta.
Trabalho sujo?
Ah, tá. A questão operária tem a capacidade de transformar o Brasil e ele está acomodando, matando a rebeldia que é intrínseca ao movimento. Rebeldia não quer dizer violência, sair para quebrar. É um comportamento crítico.
Onde o senhor vê isso no Lula?
Em tudo. Lula é um conservador, nunca quis ser personagem do movimento [operário]. Na Presidência, atuou como conservador. Pôs Dilma como uma expressão conservadora. Você não vende uma personalidade pública como gerente. Gerente é o antípoda da rebeldia. Ele a vendeu como a gerentona que sabe administrar. É péssimo. O Brasil precisa de políticos com capacidade de expressar essa transformação e dar um passo a frente. Não se pode nem ter uma avaliação mais séria dela, pois ele não deixa ela governar. Atrapalha, se mete, inventa que é o interlocutor. Ela não pode nem reclamar. É uma cria dele, né?
O sociólogo Boaventura Santos disse que Dilma tem insensibilidade social. Citou problemas com movimentos sociais, indígenas, camponeses, meio ambiente. Concorda?
Não diria com essa ênfase. É um equívoco analisar o capitalista brasileiro nos moldes europeus. Aqui nunca teve campesinato, pois teve uma propriedade extremamente concentrada do escravismo. Isso se projetou depois numa economia capitalista. O que tem é uma questão urbana grave, que é preciso resolver.
Mas problema indígena tem.
É um problema. Porque a sociedade só sabe tratar indígena absorvendo e descaracterizando. Para tratar dessa questão é preciso, na verdade, de uma revolução de alto nível. Qual é? É reconhecer que há um Estado indígena.
Estado indígena?
É. A real solução. Há um Estado indígena. O Estado capitalista no Brasil não sabe tratar essa questão. Só sabe tratar indígena atropelando, matando, trazendo para a chamada civilização. A real solução é de uma gravidade que a gente nem pode propor. Um Estado indígena. Separa. Ninguém tem coragem de dizer isso. Então todo mundo quer integrar. Para integrar, você machuca, mata, dissolve as formações indígenas.
E meio ambiente,sensibiliza?
Não acredito que seja uma forma de fazer política. A Marina Silva está aí. Ela não tem nada a dizer sobre o capitalismo? Será? Será que a política ambiental é ruim? Ou é o capitalismo que é ruim? Ela não diz. Então, para mim a Marina é uma freira trotskista [risos]. Cheia de revolução sem botar o pé no chão. Ela juntou com o Eduardo Campos, uma jogada política importante. Mas eles não têm proposta nenhuma. A Marina fica com esse ambientalismo démodé. Criticar a política de meio ambiente é fácil. Quero ver criticar o sistema capitalista nas formas em que ele está se reproduzindo no Brasil. Aí sim é botar o dedo na ferida.
O senhor disse que a política da Dilma é conservadora. Diria que ela é de direita?
Não diria. Ela é um personagem difícil, coitada. Uma personagem trágica. Porque ela não pode fazer o que ela se proporia a fazer. Ela tem uma história revolucionária. Mas não pode fazer isso porque está lá porque Lula a colocou. E Lula é o contrário, um antirrevolucionário. Ele não quer soluções de transformação, quer apaziguamento. Talvez, se as opções estivessem em suas mãos, Dilma faria uma política mais de esquerda. Mas ela não foi eleita para isso. Nem tem força social capaz de impor essa mudança.
O senhor vê alguma virtude?
O pouco de virtude é, talvez, dar um pouco mais de atenção à área social. Que eu não gosto, porque é um conformar-se em não resolver. O Bolsa Família é uma declaração de fracasso. Para não morrer de fome, dá uma comidinha. Sou socialista há 50 anos. Para mim, a gente tem de mudar. E não necessariamente por revolução violenta, que está fora de moda. Bolsa Família é política conservadora. Atende uma dimensão da miséria, mas sem promessa de transformação.
Fonte: Folha de S. Paulo
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