Para José Paulo Cavalcanti, Merval Pereira, Carlos Alberto Sardenberg e Joaquim Falcão
O
dicionário “Aurélio” revela o amplo significado da palavra “paciente”. Uma
palavra fundamental por sua capacidade de desmontar bate-bocas, inibir
impaciências em filas, adiar vinganças e apaziguar minha angústia diante deste
claro endoidecimento do Brasil.
Somos
todos pacientes porque haja paciência para suportar o hospício desta psicose
jurídico-política. De um lado, um enorme ressentimento porque o “povo”, que já
foi puro e sagrado, teve motivos para eleger um presidente querelante,
sabotador e autoritário; do outro, um surto suicida incapaz de apaziguar um
sistema obsessivamente legalista em que a forma pode valer mais que o “objeto”
ou substância (falando francamente: que o crime).
A
palavra paciente é parte do linguajar jurídico, mas creio que seria absurdo ou
despropositado chamar assassinos, genocidas e ladrões — gente como Capone,
Eichmann, Goebbels, Stálin, os torturadores do regime militar, os assassinos do
menino Henry, os larápios confessos da Operação Lava-Jato e Derek Chauvin, o
policial que matou com óbvio viés racista George Floyd — de “pacientes”.
Uma palavra que invoca neutralidade não deveria ser usada como sinônimo de quadrilheiros. Sobretudo de gente que traiu o seu voto. Mas cabe perguntar: quando um réu vira paciente? A resposta é clara: quando ele é importante!
Aliás,
se ele é o dono da grande fazenda, nem poderia ser julgado. Chamá-lo, pois, de
paciente fatalmente revela a parcialidade e a lealdade do tribunal às
convenções estruturais do “sistema brasileiro”, ancoradas na cautela dos
compadrios, dos favores e do “você sabe com quem está falando?”, ou julgando...
Essa “medida cautelar da paciência” explicita como o que conta não é o crime,
mas quem o cometeu.
Trata-se
de mais uma jabuticaba expressiva do jeitinho brasileiro.
Uma
amiga americana compara com brilho Trump e Bolsonaro. Mas é provável que Donald
seja mais facilmente explicável que Jair.
A
palavra-chave nessa comparação é o compromisso e a lealdade a uma tradição
democrática e republicana. É a fidelidade com a liberdade e com a igualdade
como valores. Biden e Harris fazem parte dessa lista, que tem desacordos, mas
não tem dúvida relativamente às complexas e duras exigências deste regime
inacabado por definição chamado democracia.
Aqui
no Brasil, ainda não concordamos se não seria melhor continuar mais ou menos
numa realeza ibérica (franquista ou salazarista), mais ou menos
populista-socialista e mais ou menos liberal-aristocrática, mas sempre
autoritária, ou se vamos continuar como frustrados republicanos, arcando com o
difícil compromisso de fazer valer a lei para todos — sobretudo, para nós
mesmos!
E,
por último, mas não por fim: se vamos cobrar coerência da instituição guardiã
da Constituição, o STF.
As
diferenças culturais entre Brasil e Estados Unidos são grandes, mas nada no
campo do humano é impossível. Os americanos têm uma Constituição pioneira,
pequena e inteligível; aqui, um oceano de leis complementares e de privilégios
impede a clareza. Eles começaram republicanos, e nós fomos um pouco de tudo.
Lá, trata-se de manter continuidade; aqui, de liquidar antigos privilégios; lá,
quanto mais privilegiado, mais se é responsável perante a lei; aqui, o justo
oposto. Lá, um federalismo localista obriga a julgamentos com início, meio e
fim; aqui, há o recurso que engaveta os processos, tirando a confiança na maior
das igualdades: a equidade perante a lei.
A
melhor prova é o caso Floyd. Lá, está resolvido! Aqui, o STF anula sentenças e
suspeita de um movimento anticrime fundamental para corrigir as trapaças do
populismo, as sobrevivências do fidalguismo e o retorno do filhotismo. Lá, o
trabalho é um chamado; aqui, foi e ainda é estigma e cicatriz da escravaria.
Aqui,
o ministro Gilmar Mendes afirma, com maestria sociológica, que o governo do PT
engendrou um “plano perfeito” de poder. Num texto magistral, esse paladino da
coerência continua: “Na verdade, o que se instalou no país nesses últimos anos,
e está sendo revelado na Lava-Jato, é um modelo de governança corrupta. Algo
que merece o nome, claro, de Cleptocracia”. Onde foi parar esse juiz? Será que
ele foi canibalizado por sua imparcialidade?
Para
concluir, lembro uma outra pérola do mesmo magistrado em sua resposta a um
colega: “O moralismo é a pátria da imoralidade”.
Como um velho acadêmico metido a cronista em pleno processo de cancelamento, digo apenas que a incoerência como um valor é, sejamos modestos, a terra da injustiça.
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