Recordemos: naquele momento, depois de dois
anos de escaramuças e bravatas do então presidente Bolsonaro contra o congresso,
houve um acordo entre ele e o presidente recém eleito da Câmara dos Deputados, Artur
Lira. Esse acordo converteu em quase tutela da câmara, via orçamento, as
prerrogativas constitucionais que o Congresso vinha legitimamente resgatando. O
resgate vinha ocorrendo desde o tempo do governo Temer e se consolidaria com a
destacada atuação do legislativo, juntamente com o judiciário, no contexto da
pandemia. Naquele contexto, o congresso preencheu lacunas e resolveu impasses
de governabilidade derivados, respectivamente, da omissão administrativa e do
ativismo negacionista do poder executivo, sob Bolsonaro. O caráter
institucional do processo tornou-se arbitrário e perverso, a partir de 2021. Em
troca da tutela sobre o orçamento, o novo comando da câmara concedeu ao então
presidente acesso a uma grande massa de recursos para uso eleitoral, um
conjunto de bondades concedidas em grau inédito, passando por cima de qualquer
regra de gestão fiscal responsável. A derrota eleitoral do incumbente não
apagou da memória nacional aquela farra.
Para vários analistas, começa-se a costear
esse mesmo alambrado, no jogo de morde/assopra entre os dois poderes,
atualmente em curso. Suspeita-se, com alguma razão, que partidos e atores
políticos com poder de comando no legislativo, não sendo desavisados quanto aos
efeitos a médio e longo prazo que teria agora a repetição do script de
2022 e almejando exercer poderes governativos, apesar das dificuldades fiscais,
buscariam, dessa vez, um caminho diferente. Um caminho que lhes garanta acesso
a recursos públicos sem matar de inanição a vaca leiteira. Esse seria o
desfecho previsível do escancaramento irrestrito dos cofres ao acesso
maximizador simultâneo das expectativas de ambas as partes envolvidas, como em
2022.
Quando se pensa nisso não se está pensando num
surto de autocontenção republicana afetando os dois lados. Em nenhum deles há
sinais disso, apesar dos esforços aparentemente sinceros do ministro da Fazenda
e de alguns parlamentares. O que se cogita é se, com a farinha pouca de agora,
em vez de conluio, teremos uma guerra entre os poderes por esses fundos.
Estão na praça narrativas de ambas as partes
para esse possível cenário de guerra continuada. De um lado, a oposição, hoje
factualmente majoritária no legislativo, impede folgas fiscais, argumentando e
rezando missa contra a gula do governo perdulário que só pensa em aumentar a já
pesada carga tributária sobre empresas e famílias. De outro, o governo Lula
aciona seus tentáculos de agitação e propaganda junto a redes virtuais,
organizações civis e movimentos sociais para veicular a imagem de um governo
interditado por um congresso inimigo do povo, capturado por bandidos agindo em
causa própria e/ou como agentes do grande capital.
A cena é de guerra declarada (ao menos até a
trégua, ou mesmo a paz, ser celebrada com doses de uísque ou goles de
cervejinha, conforme o gosto do competidor que sair ganhando mais). Mas,
afinal, se a realidade for mesmo essa, que tipo de capital político estarão
disputando ao devastarem assim a vida e os negócios públicos? Disputam o que,
mirando o próximo quatriênio? O governo de uma terra devastada e/ou o lugar de
oposição de fim de mundo?
Vivemos em terra arrasada?
Há espaço para uma visão menos cética, ainda
que realista, fundada em fatos, mais do que em impressões ou premonições. Como
a da cientista política Maria Hermínia Tavares, professora da USP, quadro
experiente das ciências sociais e intelectual pública de grande
respeitabilidade, em nosso país. Ela publicou um artigo na Folha de São
Paulo (Previsões fracassadas – FSP – 08.10.25) mostrando que não foi
pouco nem desimportante o que o governo Lula logrou aprovar - eu suplementaria:
logrou aprovar e/ou resolveu aceitar - em dois anos e meio. Ela pondera: “é certo que, sob Lula, o executivo
teve menos êxito em aprovar propostas e teve mais vetos derrubados do que em
gestões anteriores”. Mas argumenta persuasivamente que isso não se deu nem
porque o governo Lula está sem rumo, projetos, coalizão ou capacidade de
negociar suas propostas com os legisladores, nem porque o congresso não passa
de “um aglomerado de partidos povoados por picaretas, clientelistas,
patrimonialistas ou corruptos em geral”.
Maria Hermínia alerta que essa é uma visão
caricatural do congresso; que estudos sérios mostram emendas parlamentares tendo
efeitos tanto positivos como perversos; que ministérios e outros órgãos do
governo nem sempre se pautam por critérios técnicos e podem ser “contaminados”
pelo raciocínio político. Por fim, argumenta: “que a distribuição de recursos
de emendas, as disputas por cargos e o apoio a propostas de governo sejam
influenciados por cálculo eleitoral é apenas o esperado nas democracias”, onde
o poder depende das urnas.
Achei até certo ponto otimista essa
avaliação, tanto no que diz respeito ao congresso, quanto ao governo Lula. Mas a
professora enxerga bem, nos dois territórios, sinais de política razoável, que
as razões da impolítica tentam incinerar. Talvez ela esteja vendo práticas de
boa política em doses acima do que podemos ver a olho nu. Mas são variações de
ênfase, que não comprometem o argumento central sobre os resultados
predominantemente positivos das atuais relações entre os dois poderes. Argumento
que chega na contramão, em muito boa hora.
É
evidente que um novo equilíbrio se impõe entre executivo e legislativo. A
percepção não começou agora, vem da crise entre o governo Dilma e a câmara. Novo
equilíbrio seguiu sendo engendrado, com mais velocidade e menos resistência,
durante o governo Temer, provocou reação fracassada do presidente Bolsonaro e é
motivo da atual esgrima com o presidente Lula. Ele ainda não parece convicto de
que se trata de um padrão de relações cujo sentido (política orçamentaria
compartilhada) veio para ficar, embora requeira ajustes contra excessos.
Como em qualquer nascimento, as dores são
intensas, mas são dores de parto, não de aborto. A ideia de que tudo virou de
ponta-cabeça não resiste a um inventário sério e moderado, nem autoriza conclusões
como a de que uma partidocracia domina. Os partidos estão só iniciando uma
reestruturação do seu papel institucional, com fortalecimento gradual de suas
direções, sob legislação partidária e eleitoral de cunho reformista
incremental. Embora aponte a uma positiva institucionalização, ainda é processo
incipiente, convivendo com hábitos da política personalista e sendo afetado por
uma cultura fisiológica, que não se revoga por voluntarismo jurídico. Exemplar da
sinuosidade é o presidente ainda poder convidar ministros a ficarem no governo
em nome de uma lealdade pessoal após o desembarque de seus partidos, esse
convite ser aceito e os partidos rugirem, mas acabarem transigindo, em
transação com a tradição.
Além disso, ao lado da mudança de sinais
institucionais, há abusos da cúpula da câmara e de parlamentares
individualmente, uso de modalidades não transparentes de emendas e outras práticas
deletérias, sintomáticas de desconexão da representação parlamentar com a
sociedade civil. Ela busca influir e mediar de algum modo a relação desses
parlamentares com eleitores, depositando expectativas de normatização,
fiscalização e coerção, por parte da Justiça Eleitoral. Esta tem que se
equilibrar entre o que prevê a lei, o que prescreve essa pressão da sociedade
civil politizada e a neutralidade que precisa observar face a tendências outras
do eleitorado, pois a vontade do eleitor comum é princípio e fim que dá sentido
à própria Justiça Eleitoral,
Grande parte das reclamações habituais de
agentes do Poder executivo e da parte da sociedade civil que tem articulação
corporativa quanto à conduta do congresso alimenta o desejo nostálgico de
recuperar a assimetria de poder em favor do executivo, que é tradição de nossa
experiência republicana. Vem de Campos Sales, foi agravada por tintas
populistas e mesmo autoritárias no período varguista e exacerbada durante o
regime do golpe de 1964. O regresso não deve ocorrer. Um presidente só poderia
operá-lo se tivesse apoio popular para um script autoritário e, nesse
ponto, seriam suspensas as simpatias da sociedade civil. Foi o que Bolsonaro
pensou em fazer, com um suposto apoio plebiscitário que nunca se materializou.
Foi impedido por travas e prerrogativas constitucionais dos parlamentares,
habilitadas na época de Rodrigo Maia na câmara, depois pela contenção judicial
e constitucional exercida pelo TSE e STF. Não faria sentido democrático remover
essas travas e prerrogativas com o argumento de que a elite parlamentar se
deteriorou e tem hoje pior qualidade. É preciso reconstitui-la em novas bases
atitudinais e, para tal, só há um caminho democrático largo: as eleições
legislativas.
Claro que o problema fiscal do estado
brasileiro não é ficção. E é grave porque não atrapalha só a necessidade
política do governo fazer gastos num ano eleitoral. Impede também que o Estado
faça gastos e investimentos que são socialmente necessários. Esse impedimento
prejudica politicamente o presidente, administrativamente o governo e
socialmente o país. Portanto, há motivos de sobra para não se ser indulgente
com práticas não republicanas de exercício de poder e de uso de recursos
públicos. Mas essa decisão, para ter consequências além do barulho, requer uma
determinada gramática política, que é, em princípio, a do entendimento.
Um caso de entendimento concluído,
outro inacabado
No caso da aprovação da legislação do IR foi
possível praticar essa gramática e o texto final atendeu a um interesse mútuo de
governo e congresso. A narrativa de que o congresso "foi obrigado" a
ceder subestima a inteligência das pessoas. Quer convencer que deputados e
senadores são suicidas eleitorais e não queriam aprovar. Eles são tão
interessados quanto o presidente e qualquer político em serem vistos como autores
de uma medida que goza de grande simpatia popular. A briga pela paternidade da criança é normal.
O que não é normal é pessoas bem informadas crerem na fábula de que há políticos
que preferem rejeitá-la.
Uma semana depois desse acordo, o legislativo
rejeitou a MP através da qual o governo pretendia obter novo alivio fiscal sem
contemplar também interesses da poderosa oposição congressual. Grassa uma indignação.
Mas o argumento é simplório e, por isso, enganador. Ao legislativo cumpre pensar
no bem comum do país e ponto final, seja lá qual for o sentido com que o
governismo interpreta esse bem comum. Já o executivo tem direito de pensar ao
mesmo tempo nesse bem comum e no seu interesse eleitoral pois, conforme a
narrativa, as duas coisas são uma coisa só. É claro que essa conta não fecha e
desse modo a gramática do entendimento fracassa e anuncia-se um cabo de guerra para
durar até que falte força aos braços para a luta.
O
governo tem como negociar com o congresso um alívio fiscal, sem ter que cortar gastos
com políticas sociais relevantes. Há espaço para isso, pelo mesmo motivo
(eleitoral). Nenhum político ou partido simpatizaria com esse tipo de corte a
não ser que fosse suicida em potencial. O entendimento deve dar compensação
político-eleitoral que estimule um pacto socialmente inclusivo, em vez de
adesão individual de parlamentares a lobbies socialmente regressivos.
Está na
pauta do congresso um projeto de reforma administrativa que permite aos três
poderes cortar despesas que beneficiam suas corporações internas e preservar
políticas que interessam ao grande público. Antes que a acusação de
"neoliberal" seja lançada contra esse argumento, evitando o debate
sério do projeto, é bom dizer que se trata de reforma essencial, com resultados
não só fiscais, mas também sociais, como reduzir a desigualdade entre o status
das corporações e os dos brasileiros comuns. Espera-se de um governo
progressista que lute para convencer o congresso a aprová-la e não se finja de
morto, na torcida para o judiciário bloquear. É via de entendimento, se o
desejo for preservar políticas públicas em contexto de ajuste fiscal.
Contudo, em contextos de polarização
ideológica, toda controvérsia ganha ares de crise, todo ajuste vira questão de
princípio e a gramática do entendimento não consegue se consolidar. É preciso
orientação atitudinal mais abrangente que a do entendimento sobre questões
tópicas. Esse ponto envolve os complexos temas da conciliação e da pacificação,
um par de termos afins, mas não sinônimos. É preciso discuti-los junto com a
moléstia política cujo tratamento exige que esse par compareça e com uma
prática de saúde democrática que esse par viabiliza. A moléstia é golpismo (e populismo, seu primo-irmão).
A boa prática, livre participação eleitoral.
Joio, trigo, eleições e a saúde da
democracia
Escrevi, no último fim de semana, nesta
coluna, um artigo em cujo título está a sequência de palavras aqui lembrada (“Golpismo-conciliação-pacificação-eleições”
- Política porque hoje é sábado, 11.10.25). Reitero, em quatro breves
parágrafos, reflexões presentes naquele texto.
Virou "espírito do tempo" fazer de
vidraça nossa tradição política conciliatória, porque ela seria, segundo esse
modo de ver, uma estratégia oligárquica. Mas a conciliação pode ser, e em
muitos casos tem sido, uma arte mobilizada pela política contra inimigos da
democracia.
Houve implicações democráticas em várias conciliações.
O melhor exemplo - que perdura com chances de vida longa – foi a transição
democrática que há quase meio século, superou o regime autoritário. E houve
experiências funestas quando a conciliação faltou, como em 1964.
Nada disso quer dizer que toda conciliação é
e sempre será boa e que sua ausência sempre representará risco sério de
tragédia. Mas a ideia de que conciliação é o vírus portador da moléstia do
golpismo é uma tese suspensa no ar, que dispensa a si mesma de demonstração.
Em lugar desse raciocínio, é preciso conectar
a política conciliadora, no varejo, a uma grande política que faça da
conciliação caminho de pacificação no atacado. O da pacificação é o terreno
onde a competição política pode substituir a guerra. Nesse terreno pacificado pode
transcorrer de modo mais democrático a competição política, que tem em eleições
seus momentos de auge.
Assim é possível explicar a sequência
ordenada: golpismo como um problema que a conciliação refrata, produzindo
pacificação, a qual permite firmar, no lugar da guerra, uma competição
eleitoral efetiva, com o máximo possível de qualidade e pluralidade e um mínimo
de interditos.
O povo não entra como problema nessa equação,
nem no momento da conciliação. Ela, por definição, não o inclui, porque é um método
de elites para lidar com crises, com uma orientação oposta à do golpismo, este,
sim, um método inimigo da democracia, parta de onde partir. Na pacificação, que pode resultar de uma
conciliação, o cidadão entra como beneficiário potencial. Ela é que pode
permitir sua vontade e participação eleitoral serem realmente livres e decisivas.
Fora das eleições, o povo pode entrar como
soberano rebelado, demandando até mesmo providências contraditórias com a democracia,
para reverter situações criadas por golpismos, quando elites políticas não
querem ou não conseguem, por si mesmas, derrotá-los, como devem. Ou então como
massa de manobra, em polarizações bélicas, ou em tipos de conciliação que
deixem de ser um método para obter paz (status desejável pela
democracia) para serem, elas mesmas, status quo conservado por alguma
oligarquia, ou herdado por alguma contra elite.
Creio ser razoável, numa política democrática, pensar que em ambos os casos (como soberano ou como massa) a mobilização extra eleitoral de cidadãos é sintoma de problema, não de saúde da democracia. Sua saúde depende de se ter um palco de processo participativo de competição e exercício contínuos do poder. O espetáculo será interativo se houver paz para debate eleitoral.
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