Folha de S. Paulo
Diversos ministros do STF parecem dispostos a
tornar facultativo o regime de direitos do trabalhador
Perda de arrecadação com pejotização
inviabiliza a Previdência e demais políticas sociais
As primeiras formas de regulação do
trabalho surgiram na Inglaterra, ainda no período medieval. O
Estatuto dos Artífices, de 1563, fruto de um acordo judicial, impôs ao Estado
"incentivar a lavoura e garantir aos empregados salários proporcionalmente
convenientes, tanto em tempo de escassez como de fartura".
Essa expressão da "economia moral" do mundo feudal, nas palavras do historiador E. P. Thompson, ruiu em face do vertiginoso processo de urbanização e industrialização, na passagem do século 17 para o 19. A mão de obra, onde não havia escravidão, passou a ser objeto das leis de mercado. Sob o manto da autonomia individual, cada um poderia, teoricamente, negociar o valor do seu trabalho.
A primazia da autonomia da vontade foi
coroada no caso Lochner v Nova York (1905), em que a Suprema Corte
norte-americana declarou inconstitucional legislação que estabelecia o máximo
de dez horas para a jornada de trabalho, sob o pretexto de que a Constituição
não permitia ao Estado interferir na liberdade de contratação entre
trabalhadores e empregadores.
As múltiplas crises, guerras e revoluções
decorrentes do "darwinismo social" da Era Lochner foram determinantes
para o surgimento dos direitos dos trabalhadores e do próprio estado de
bem-estar. No Brasil, esse contramovimento, no dizer de Karl Polany, começou
com a CLT e só se completou com a Constituição de 1988, que reafirmou os direitos dos
trabalhadores e universalizou direitos sociais à Previdência e
à assistência, além dos direitos à saúde e à educação.
Esse edifício civilizatório, ainda bastante
incompleto, encontra-se agora sob a ameaça de um novo darwinismo social. Sob o
manto da autonomia individual, da livre iniciativa e do empreendedorismo,
diversos ministros do Supremo Tribunal Federal parecem dispostos a tornar
facultativo o regime dos direitos do trabalhador.
Como ficou demonstrado em audiência
pública promovida pelo STF sobre a "pejotização" e
nas argumentações
orais referentes ao processo de "uberização" do
trabalho, duas são as consequências diretas desses movimentos. A primeira,
evidentemente, é afastar a incidência de direitos humanos básicos das relações
de trabalho. Se o contrato é com uma pessoa jurídica, ainda que encobrindo uma
verdadeira relação de trabalho, não há como se falar em discriminação racial ou
de gênero, jornada extenuante, ambiente insalubre, férias, licença maternidade,
sindicalização ou direito de greve.
De outro lado, há substantiva perda de
arrecadação. De 2022 a 2025, dos 5,5 milhões de empregados CLT desligados, 4,4
milhões se tornaram MEI. Isso significou uma perda de R$ 70 bilhões para a
Previdência Social; R$ 27 bilhões para o FGTS; e R$ 8 bilhões para o Sistema S
(MTE, 2025). Isso sem falar nas perdas de importo de renda, sobretudo em
relação aos contribuintes mais ricos. Se metade dos 35 milhões de empregados
CLT brasileiros migrar para MEI ou Simples, as perdas estimadas serão de R$ 384
bilhões por ano (Marconi, Brancher, FGV, 2023), inviabilizando a Previdência e
as demais políticas sociais promovidas pela Constituição.
Evidente que as regras trabalhistas precisam
de constante atualização. Só não podemos aceitar que a "economia
moral" do futuro seja mais perversa que a medieval.
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