CartaCapital
Além
de corroer o pacto social de 1988, a “pejotização” compromete a
sustentabilidade da Previdência
O Supremo Tribunal Federal realizou, na segunda-feira 6, uma audiência pública para debater os desafios econômicos e sociais da chamada “pejotização” no Brasil. Na prática, discutiram-se os próprios rumos do Direito do Trabalho, a partir das questões formuladas pelo ministro Gilmar Mendes, relator do Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 1.532.603. Entre os temas em análise estão a licitude das contratações via pessoa jurídica ou como autônomo, a competência da Justiça do Trabalho para julgar eventuais fraudes e a distribuição do ônus da prova entre as partes.
Para compreender os contornos do debate, é
fundamental retomar as premissas estabelecidas nos votos proferidos durante
o julgamento da ADPF 324, que reconheceu a licitude das
terceirizações em todas as atividades empresariais. Na referida ação, o então
relator, ministro Luís Roberto Barroso, destacou que os direitos previstos no
artigo 7º da Constituição impõem limites à liberdade de contratar, afirmando que
“há direitos fundamentais mínimos dos trabalhadores que estarão sempre
assegurados” e que “esses direitos básicos constitucionalizados não podem ser
afastados”. O próprio ministro Gilmar Mendes foi ainda mais taxativo ao
enfatizar que a flexibilização demanda ajustes econômicos, políticos e
jurídicos, para que os direitos dispostos no artigo 7º sejam garantidos. “Não
se trata aqui de fazer uma ode à informalidade e um réquiem de garantias
trabalhistas.”
A essencialidade dos direitos trabalhistas,
reconhecidos como fundamentais pela Constituição de 1988, já foi declarada pelo
STF, configurando um preceito inarredável e insofismável. Fruto de uma escolha
deliberada do constituinte, essa proteção incorpora os cânones do Direito do
Trabalho, fundamentados na assimetria das relações em que o trabalho é o
elemento central do vínculo jurídico. O artigo 7º da Carta Magna consagra a
relação de emprego regida pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e a
presume entre qualquer outra forma alternativa de prestação de serviços.
Não se trata, portanto, de ideologia ou
paternalismo, apesar de esses desairosos adjetivos terem sido largamente
empregados pela Corte ao se referir à Justiça do Trabalho e aos atores do
sistema de proteção trabalhista, incluindo advogados, procuradores, auditores
fiscais e juízes. Trata-se, tão somente, de uma escolha constitucional, que
evoca o direito social como mantra e elemento basilar e fundante da sociedade
brasileira. Partindo do pressuposto de que a relação de emprego é o princípio que
rege os negócios jurídicos nos quais esteja presente a força de trabalho
humana, a Constituição ancorou os deveres do Estado e da sociedade na proteção
plena de seus cidadãos e no próprio desenvolvimento econômico do País.
Entre 2022 e 2024, perto de 4,8 milhões de
celetistas demitidos retornaram ao mercado como pessoas jurídicas
A Previdência e a Seguridade Social são
sustentadas, em sua maior parte, por recursos provenientes da folha de
pagamento dos empregados e das contribuições sobre o lucro e o faturamento dos
empregadores, conforme previsto nos artigos 195, incisos I e II, e 198,
parágrafo 3º, da Constituição Federal. Já o Fundo de Garantia do Tempo de
Serviço (FGTS), constituído por depósitos mensais sobre a remuneração dos
empregados celetistas, atua como indutor do crescimento econômico e instrumento
de bem-estar social. Seus recursos financiam a construção de moradias, a
ampliação da rede de abastecimento de água e o desenvolvimento da
infraestrutura urbana no País.
Somente no ano passado, o FGTS destinou 131,2
bilhões de reais para contratações nas áreas de habitação, saneamento e
infraestrutura; liberou 11,5 bilhões em subsídios para ampliar o acesso de mais
famílias à casa própria; financiou mais de 605 mil unidades habitacionais; e
autorizou 163,3 bilhões em saques, incluindo o apoio à calamidade no Rio Grande
do Sul e em outros municípios. Ao divulgar os dados oficiais, a Caixa
acrescentou: “O desempenho financeiro do FGTS reflete também o aumento da
arrecadação, que ultrapassou 192 bilhões de reais em 2024, um crescimento
superior a 9% em relação ao ano anterior. Esse cenário está diretamente ligado
ao maior número de trabalhadores com carteira assinada e ao aumento do valor
médio dos salários, conforme dados do Caged e do IBGE”.
A liberdade econômica irrestrita, apoiada na
contratação de prestadores de serviços sob variadas formas à margem do modelo
celetista, como autônomos ou pejotizados, não encontra respaldo na lógica da
Constituição Cidadã, um marco na garantia dos direitos sociais no Brasil. Por
isso, é necessário compatibilizar o exercício de qualquer atividade econômica
com a estrutura trabalhista clássica prevista no artigo 7º.
Enquanto essa compatibilização não ocorre, a
justiça social se esvai. Entre janeiro de 2022 e outubro de 2024, perto de 4,8
milhões de trabalhadores celetistas demitidos retornaram ao mercado como
pessoas jurídicas. Desses, 3,8 milhões tornaram-se microempreendedores
individuais (MEIs). Esse movimento gerou um rombo previdenciário de 61,42
bilhões de reais e perda de 24,2 bilhões na arrecadação do FGTS.
Da mesma forma, merece destaque um trabalho
técnico divulgado em setembro de 2025 pelo Centro de Estudos Sindicais e de
Economia do Trabalho (Cesit), da Unicamp. Segundo os pesquisadores responsáveis
pela análise, os resultados “indicam que a pejotização irrestrita eleva o
desemprego, reduz salários, desacelera o crescimento econômico, aumenta a
volatilidade da economia e amplia a desigualdade salarial entre os
trabalhadores. Mesmo em um cenário conservador, os benefícios fiscais e a
redução de custos para as empresas não superam os efeitos negativos sobre a
demanda agregada e a estabilidade econômica”.
Resta demonstrado, portanto, que a
pejotização – historicamente reconhecida, no âmbito trabalhista, como uma
fraude destinada a mascarar típicas relações de emprego – não compensa.
*Presidente da Associação Nacional dos
Procuradores do Trabalho (ANPT).
Publicado na edição n° 1384 de CartaCapital, em 22 de outubro de 2025.
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