quarta-feira, 10 de dezembro de 2025

Tarcísio, a modernidade de papelão. Por Ricardo Queiroz Pinheiro

Há algo que me irrita profundamente no debate público: a naturalidade com que se vende Tarcísio de Freitas como novidade. A facilidade com que se atribui a ele a imagem de gestor moderno, técnico, quase redentor. Não que eu tenha qualquer ilusão com os pruridos da mídia liberal e com os profissionais da higienização do discurso. Mas a coreografia em torno de Tarcísio é explícita e caricata demais: uma operação de marketing político que depende de amnésia coletiva e da viralização da cartilha liberal. A falta de memória reposiciona a continuidade da “Ponte para o Futuro — Parte 2” como se ela não tivesse mostrado seu esgotamento e falência na vida cotidiana, e como se o país não tivesse aprendido o preço de um Estado reduzido ao papel de fiador de interesses privados.

O que hoje se chama de modernização não passa da atualização de uma engrenagem antiga. Mas ela não retorna idêntica. A gestão Tarcísio em São Paulo deixa isso evidente. Ela vem acelerada pela ansiedade do capitalismo pós-crise de 2008 — esse período descrito pelo filósofo italiano Franco “Bifo” Berardi, referência central da crítica à aceleração, como o momento em que o sistema “sobrevive como uma boca aberta que mastiga o presente”. A aceleração imediatista — exaustiva, saturada, incapaz de planejar — deu nova vida ao patrimonialismo brasileiro: agora com jargão corporativo, linguagem de compliance, consultorias onipresentes e fundos de investimento ditando prioridades. A lógica é devorar o Estado, não estruturá-lo — fingir um Estado mínimo só para maximizar o domínio de quem se serve dele.

É dentro desse clima que Tarcísio se torna funcional. Menos por sua suposta competência técnica — do que por sua plasticidade política. Com o perdão da aberração estética. Ele se adapta aos caprichos da plutocracia, oferece previsibilidade ao mercado e opera como gerente disciplinado de interesses que preferem o Estado fraco, velhos contratos blindados e políticas públicas condicionadas a tabelas de retorno privado. Mistura patrimonialismo clássico com o imediatismo faminto do capitalismo financeirizado e com os tiques do gerencialismo pós-moderno. É a fraude perfeita: concessões improvisadas, privatizações tratadas como panaceia, contratos de longo prazo sem risco real para concessionárias e projetos territoriais moldados pela lógica tarifária, não pelo interesse nacional. Não há ali visão de país. Há manejo de ativos e captura de lucros rápidos.

O mito da eficiência nasce do contraste com o caos bolsonarista. Em meio àquela desordem, qualquer administrador minimamente sanitizado parecia exceção virtuosa. Mas basta retirar o pano de fundo para ver o que sobra: um operador limitado, servil, sem horizonte estratégico, repetindo o receituário que estagnou a economia, aprofundou desigualdades e desmontou a capacidade estatal. A imagem de modernidade funciona como embalagem; o conteúdo é o mesmo lote de sempre, com a marca antiga relançada para consumo rápido.

Essa aceitação ampla só existe porque parte importante das elites brasileiras — econômica, midiática, jurídica — precisa desse tipo de figura pública. Ele garante contratos longos, regulações confortáveis, ausência de conflito e um Estado convertível em plataforma de negócios. É o homem certo para um país educado, desde 2016, a desconfiar de política de desenvolvimento, a considerar soberania sinônimo de excesso e a medir o sucesso nacional pela estabilidade tarifária de setores regulados. Para essas elites, Tarcísio oferece silêncio, disciplina e previsibilidade.

Há ainda um ponto central: o modelo Tarcísio não destrói as instituições; ele as esvazia. Mantém estruturas, mas reduz sua função. Secretarias viram balcão, agências viram carimbo, conselhos viram formalidade. O Estado opera, mas não governa. A fachada permanece; a substância evapora. É a versão brasileira da tendência global pós-2008: sistemas estatais que simulam normalidade enquanto entregam suas funções centrais ao mercado. O ritmo frenético de editais substitui o planejamento; o mantra da eficiência substitui o debate sobre prioridades nacionais.

Esse cenário ganha nitidez quando comparado ao que o governo Lula executou entre 2025 e agora. Não se trata de enaltecimento acrítico. O lulismo tem limites sérios: não altera a estrutura tributária regressiva, não enfrenta a hegemonia financeira, não redesenha o pacto federativo. Mas recoloca o país em movimento. Reabre investimento público, devolve função ao BNDES (ainda com prudência excessiva), reativa setores industriais, organiza obras territoriais sob coordenação estatal, oferece oxigênio fiscal a municípios e reabre a arena institucional sufocada nos anos anteriores. Os indicadores respondem: renda real em alta, emprego formal crescendo, inflação sob controle, ambiente político menos inflamado.

É insuficiente para transformar a estrutura, mas suficiente para romper o cerco que o liberalismo patrimonialista tentou impor: um país reduzido a gestor de contratos e sem horizonte estratégico. Lula não resolve a equação, mas devolve ao país o direito de disputar o que vem depois. E isso é precisamente o que o modelo Tarcísio tenta impedir: o retorno da política ao campo das decisões estruturais, onde desenvolvimento, soberania e integração territorial voltam a ter lugar.

Lula não pode ser banalizado como um dublê do receituário liberal. Essa leitura virou um conforto retórico para parte da esquerda: uma crítica estridente que prefere a caricatura ao trabalho paciente de interpretar o que está em disputa. Ela ignora que o que existe hoje não é uma conversão ao liberalismo, mas um processo diário, conflituoso, cheio de tensões internas, no qual o governo tenta reconstituir margens de ação num Estado corroído. Não há virada repentina — há fricção constante. E é justamente essa fricção, incômoda e imperfeita, que reabre o terreno onde prioridades podem ser reorganizadas e onde projetos — ainda frágeis — voltam a ter chance de existir.

A ironia é que, enquanto Tarcísio se apresenta como futuro, é sob Lula que o país começou a recuperar a capacidade mínima de imaginar algum futuro. Não o futuro desejável, mas o futuro possível. Um Estado que se preste a coordenar políticas públicas, que ensaia reorganizar sua engenharia e que respira institucionalmente cria campo de disputa. O modelo Tarcísio não quer campo; quer consenso gerencial e plutocrático.

No final das contas, o que Tarcísio representa não é a modernidade, nem gestão eficiente, nem técnica. Ele é a forma brasileira da fase ansiosa do capitalismo global, na qual uma ideia de eficiência se confunde com velocidade e planejamento se resume a concessão. Um híbrido de patrimonialismo histórico com o imediatismo financeiro de um mundo exaurido. E aqui o crítico cultural britânico Mark Fisher, autor de Realismo Capitalista, oferece o diagnóstico preciso: Tarcísio é o operador ideal de um sistema que, para continuar existindo, precisa devorar o próprio futuro. Sem lirismo antropofágico, sem ponte alguma.”

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