Folha de S. Paulo
Briga da família Bolsonaro lembra "A
Megera Domada", uma das primeiras comédias shakespearianas
A mulher de 'seu' Jair evoca a Catarina da
obra por ser considerada tanto pelos enteados como pelo PL uma 'personagem
incontrolável'
O apetite sucessório é só mordida e entredevoração. Houve quem associasse o racha no clã Bolsonaro à disputa entre as filhas do "Rei Lear", de Shakespeare, pela tomada do poder. O rei enlouquece, as filhas morrem. A briga do clã, entretanto, tem mais a ver com "A Megera Domada", uma das primeiras comédias shakespearianas, que narra os percalços da indomável Catarina com Petrúcio, o fidalgo de Verona, seu pretendente. Ao olhar woke, uma trama misógina. No fundo, uma bem-humorada discussão sobre desigualdade de gênero.
O próprio dramaturgo inglês abriu as portas
para comparações entre a ficção e o real quando, refletindo sobre a
teatralidade da existência humana, garantiu que "o mundo inteiro é um
palco e todos os homens e mulheres não passam de meros atores" (em
"De Como lhe Aprouver"). Mas se pode agregar a hipótese de que fora
dessa ribalta haja só devoração (Oswald de Andrade, Ailton Krenak).
Entre nós, megera seria a madrasta
dos filhos do agora "seu" Jair. Na boca popular, madrasta
(do latim vulgar "matrasta", nova mulher do pai) não é nenhum
espírito angélico, e sim jararaca, megera, não sei que diga. A mulher de
"seu" Jair evoca a Catarina da comédia shakespeariana por ser
considerada tanto pelos enteados como pelo PL uma
"personagem incontrolável". A contrapelo de todos, inclusive do
marido, opôs-se a uma aliança política no Ceará e prevaleceu.
Na comédia, um dos truques de Petrúcio para
submeter Catarina consiste em lhe sabotar os dotes culinários, atribuindo
defeitos a cada um dos pratos que ela prepara. Com um simples milho cozido,
entretanto, a madrasta encanta a quem chama de "meu galo", afirmando
que agora, sim, detrás das
grades, ele poderá comprovar a sua divisa de
"imbrochável". Verdades perversas cotejam o mau gosto.
Nada disso mereceria registro público se
ainda restasse dignidade íntima nos espaços privados. Eliminando as fronteiras
entre as duas esferas, a mídia aumenta o fluxo de passagem, no circo
existencial, entre picadeiro e plateia. Grave é que a modéstia de um público
circense não chegue perto sequer da fração populacional de 3%, ainda assim
milhões de eleitores, colados à imagem de "seu" Jair. Agora, aliás,
mais do que nunca pura imagem, fixada em recortes de papelão pela madrasta. Uma
hipercaricatura do queremismo getulista, que já era um fenômeno infame em sua
época.
Clã é sujeito coletivo convicto de que
genética não define família. Por isso pode alimentar a ilusão vaporosa de
pertencimento simbólico dos seguidores a essa facção. Seja clã ou franquia, é
elenco virtual de uma mesma peça, que espera transformar um medíocre
vereador carioca em senador catarinense ou o senador
chocolateiro em candidato fake à presidência da República. No final da comédia
shakespeareana, Petrúcio submete Catarina. Na pantomima brasileira, em meio a
cambalachos e rasteiras, Bíblia numa mão e milho cozido na outra, a madrasta
trama a última palavra: vice-presidência como sonho dourado.

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