domingo, 14 de dezembro de 2025

Um clã bizarro no palco eleitoral. Por Muniz Sodré

Folha de S. Paulo

Briga da família Bolsonaro lembra "A Megera Domada", uma das primeiras comédias shakespearianas

A mulher de 'seu' Jair evoca a Catarina da obra por ser considerada tanto pelos enteados como pelo PL uma 'personagem incontrolável'

O apetite sucessório é só mordida e entredevoração. Houve quem associasse o racha no clã Bolsonaro à disputa entre as filhas do "Rei Lear", de Shakespeare, pela tomada do poder. O rei enlouquece, as filhas morrem. A briga do clã, entretanto, tem mais a ver com "A Megera Domada", uma das primeiras comédias shakespearianas, que narra os percalços da indomável Catarina com Petrúcio, o fidalgo de Verona, seu pretendente. Ao olhar woke, uma trama misógina. No fundo, uma bem-humorada discussão sobre desigualdade de gênero.

O próprio dramaturgo inglês abriu as portas para comparações entre a ficção e o real quando, refletindo sobre a teatralidade da existência humana, garantiu que "o mundo inteiro é um palco e todos os homens e mulheres não passam de meros atores" (em "De Como lhe Aprouver"). Mas se pode agregar a hipótese de que fora dessa ribalta haja só devoração (Oswald de Andrade, Ailton Krenak).

Entre nós, megera seria a madrasta dos filhos do agora "seu" Jair. Na boca popular, madrasta (do latim vulgar "matrasta", nova mulher do pai) não é nenhum espírito angélico, e sim jararaca, megera, não sei que diga. A mulher de "seu" Jair evoca a Catarina da comédia shakespeariana por ser considerada tanto pelos enteados como pelo PL uma "personagem incontrolável". A contrapelo de todos, inclusive do marido, opôs-se a uma aliança política no Ceará e prevaleceu.

Na comédia, um dos truques de Petrúcio para submeter Catarina consiste em lhe sabotar os dotes culinários, atribuindo defeitos a cada um dos pratos que ela prepara. Com um simples milho cozido, entretanto, a madrasta encanta a quem chama de "meu galo", afirmando que agora, sim, detrás das grades, ele poderá comprovar a sua divisa de "imbrochável". Verdades perversas cotejam o mau gosto.

Nada disso mereceria registro público se ainda restasse dignidade íntima nos espaços privados. Eliminando as fronteiras entre as duas esferas, a mídia aumenta o fluxo de passagem, no circo existencial, entre picadeiro e plateia. Grave é que a modéstia de um público circense não chegue perto sequer da fração populacional de 3%, ainda assim milhões de eleitores, colados à imagem de "seu" Jair. Agora, aliás, mais do que nunca pura imagem, fixada em recortes de papelão pela madrasta. Uma hipercaricatura do queremismo getulista, que já era um fenômeno infame em sua época.

Clã é sujeito coletivo convicto de que genética não define família. Por isso pode alimentar a ilusão vaporosa de pertencimento simbólico dos seguidores a essa facção. Seja clã ou franquia, é elenco virtual de uma mesma peça, que espera transformar um medíocre vereador carioca em senador catarinense ou o senador chocolateiro em candidato fake à presidência da República. No final da comédia shakespeareana, Petrúcio submete Catarina. Na pantomima brasileira, em meio a cambalachos e rasteiras, Bíblia numa mão e milho cozido na outra, a madrasta trama a última palavra: vice-presidência como sonho dourado.

 

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