Ivan Marsiglia
A 43ª Cúpula de Presidentes do Mercosul, em Mendoza, na Argentina, ocorreu essa semana em clima de Família Trapo: reinou a confusão entre os países irmãos. Tudo por conta do drama político que se desenrolou no Paraguai, com seu presidente, o ex-bispo católico Fernando Lugo, destituído do cargo em tempo recorde pelo Senado, em favor do vice, Federico Franco. Golpe ou devido processo legal? Esse foi o debate que monopolizou a semana. Na quinta-feira, evocando a chamada "cláusula democrática" do Mercosul, os chanceleres do Brasil, Argentina e Uruguai decidiram suspender o novo governo de Assunção das reuniões e decisões do bloco até a realização das eleições presidenciais naquele país, previstas para abril do ano que vem.
No dia seguinte, a presidente argentina, Cristina Kirchner, que enfrentara greve e manifestação de sindicatos em frente à Casa Rosada na quarta, escancarou sua preocupação: evitar novos "golpes suaves" no continente. E resumiu o estado de espírito latino-americano por esses dias, parafraseando o escritor Jorge Luis Borges: "Não nos une tanto o amor, mas sim o espanto". Dilma Rousseff, que assumiu na ocasião a presidência temporária do Mercosul e elogiou a decisão de punir politicamente o Paraguai, atuou nos bastidores para impedir sanções econômicas ao vizinho. E ambas as presidentes anunciaram, braços dados com o colega uruguaio José Mujica, a adesão da Venezuela de Hugo Chávez como membro pleno do bloco.
Nada disso espanta o ensaísta, jornalista e historiador mexicano Enrique Krauze, um dos mais argutos observadores da coreografia política de nosso continente - para quem os movimentos acima são parte corriqueira do desengonçado balé democrático latino-americano.
"A democracia em nossos países é tão jovem e frágil que a continuidade é vista como um valor, enquanto a interrupção de um governo é admitida apenas como exceção", explica o autor de livros como O Poder e o Delírio, biografia demolidora de Chávez ainda sem edição brasileira, e Os Redentores - Ideias e Poder na América Latina, uma galeria das lideranças messiânicas que tingiram e ainda tingem a política do continente com as cores do populismo, lançado em 2011 pela Benvirá. Para o historiador, a despeito do rito constitucional sumário em que se deu o impeachment de Lugo, a soberania do Paraguai deve ser respeitada. Entretanto, afirma, citando um antigo dito espanhol, que o país sul-americano terá de se haver com as consequências de ter feito "coisas boas que parecem más".
Na entrevista a seguir, Enrique Krauze analisa a nova cena político latino-americana que se desenha anos após a "onda vermelha" que elegeu governos de diferentes matizes de esquerda no Brasil, Argentina, Paraguai, Uruguai, Bolívia, Venezuela e Equador. E, embora não acredite na chegada de uma ola conservadora a apeá-los em dominó do poder, desconfia que talvez estejamos assistindo ao último adeus do populismo no continente.
"As novas gerações estão se dando conta de que a via proposta por Chávez e Fidel não é viável nem conveniente", diz Krauze. Uma tomada de consciência proporcionada em grande medida, segundo ele, pelo exemplo brasileiro. "O Brasil teve, consecutivamente, três presidentes oriundos da esquerda - a esquerda acadêmica, a sindical e até a guerrilheira. Todos comprometidos com a democracia e a modernização." E ressalta, criticando a virulência dos ataques de Álvaro Uribe a seu sucessor, Juan Manuel Santos, na Colômbia, que o populismo também pode se vestir com a farda da direita. A seguir, os principais trechos da entrevista concedida ao Aliás de sua casa na Cidade do México, às vésperas das eleições em seu país.
Com o passar dos dias, qual é sua avaliação e que impressão ficará da reviravolta política no Paraguai?
A destituição de Lugo é menos polêmica que a que ocorreu em Honduras, pois temos a impressão que ao menos ela se deu nos termos das cláusulas constitucionais do país. O que acontece é que a democracia em nossos países é tão jovem e frágil que qualquer coisa que pareça ruim resulta ruim. Em um contexto de fragilidade democrática, a estabilidade e a continuidade são vistas como um valor, enquanto a interrupção de um governo é admitida apenas como exceção. Pessoalmente, faço votos de que a marcha institucional do Paraguai termine por demonstrar que o processo como se deu, que de fato não parece tão bom, tenha sido um recurso necessário.
Recém-empossado, o novo presidente Federico Franco logo tratou de receber o núncio apostólico do Vaticano. Nos dias que antecederam o golpe, autoridades da Igreja local espalhavam que Lugo "não fazia bem à família paraguaia", em alusão aos filhos de um homem comprometido com o celibato. O papel da Igreja foi decisivo em sua queda?
A mim me parece deplorável que a Igreja, a essas alturas da história, siga tendo um peso político tão grande em alguns países. Eu não sou jacobino, mas penso que esse não é um signo de modernidade. A mim tampouco me parece que os costumes estritamente privados dos governantes tenham que ter mais importância que seu desempenho público. Entretanto, essa já é uma situação mundial - vide o que se constata nos Estados Unidos até hoje, quase uma intolerância puritana em relação aos hábitos dos candidatos, algo lamentável. Mas trata-se de um vício quase universal da democracia.
Quinta-feira, o Mercosul decidiu suspender o novo governo do Paraguai das reuniões e decisões do bloco até as eleições presidenciais do ano que vem. Jornais paraguaios chegaram a aludir à Tríplice Aliança, que uniu Brasil, Argentina e Uruguai contra o país vizinho em 1864, na Guerra do Paraguai. Foi uma reação desproporcional?
Eu não conheço a Constituição do Paraguai, mas o país é soberano em suas próprias decisões e é preciso respeitá-las. Ainda assim, não podemos fechar os olhos diante da realidade política de que o prestígio democrático da América Latina não é o mais alto. E é preciso ser muito cuidadoso em relação à forma como certas decisões são tomadas. De novo, evoco um velho ditado espanhol que não sei se tem correspondente em português: No hagas cosas buenas que parescan malas (não faça coisas boas que pareçam más). Eu acredito que no Paraguai se fizeram coisas que podem até estar corretas, mas de uma forma que não parece correta. Por isso, os paraguaios vão padecer até que esse capítulo se encerre. Em política, as aparências são tão importantes quanto a realidade.
A Argentina de Cristina Kirchner assistiu essa semana a uma greve de caminhoneiros que reuniu milhares de pessoas em frente à Casa Rosada, e a Bolívia de Evo Morales enfrenta há meses uma greve de policiais. Há sinais de instabilidade no continente ou é apenas rotina?
Essa instabilidade é rotineira, mas é uma boa notícia que os governos populistas estejam enfrentando as consequências de suas promessas. Ainda que nossas jovens democracias muitas vezes não entendam a importância da responsabilidade, na vida não é possível receber sem dar, nem dar sem receber. Se não se tem consciência de que todas as liberdades vêm acompanhadas de responsabilidades, o tecido social se desvirtua. Quem planta por todos os lados promessas de riqueza infinitas, uma hora vai encontrar os destinatários a cobrá-las. Agora vamos ver como esses governos populistas sairão dessa.
Outra situação que causa perplexidade é a da Colômbia: encastelado em um quartel militar, o ex-presidente Álvaro Uribe subiu o tom das críticas à política do sucessor que ele próprio escolheu, Juan Manuel Santos. Como entender isso?
Eu considero que, assim como há "redentores" de esquerda, também existem os de direita. E Álvaro Uribe está se aproximando perigosamente de tal perfil, começando a pensar que a história da Colômbia não pode caminhar nem avançar sem sua presidência. Esse enfrentamento direto que ele tem feito a Santos me parece muito perigoso. Porque a Colômbia, com todos os problemas que conhecemos, sempre foi um país exemplar em sua marcha democrática. Quero dizer uma coisa: não creio em "homens indispensáveis". A ideia de que certos líderes são necessários e indispensáveis é muito ruim. A postura de Uribe hoje é tremendamente criticável.
Seu país, o México, também vive um momento delicado, com as eleições ocorrendo em meio à guerra declarada do Estado contra grupos narcotraficantes. Como o sr. vê esse cenário?
O México enfrenta neste domingo um novo desafio em sua vida democrática. Irão às urnas mais de 40 milhões de pessoas. O país hoje tem instituições eleitorais autônomas que manejam o pleito de maneira confiável e a vitória, segundo os institutos de pesquisa, deverá ser do PRI (Partido Revolucionário Institucional, hoje na oposição). O PRI conserva muito dos aspectos que nos levaram a chamá-lo de "partido dos dinossauros", mas também tem uma ala jovem que pode vir a modernizar o partido. Isso nós ainda vamos saber. Ainda que o partido tenha o hábito de grande corrupção política e econômica, também é verdade que o México mudou tanto nos últimos anos que uma restauração pura e simples do velho sistema será impossível. Acredito que, muito mais que o PRI, vai triunfar hoje a democracia do nosso país, que não tem mais que 14 anos de vida, mas tem avançado substancialmente.
Um ano atrás, quando o sr. concedeu uma entrevista ao Aliás, a América Latina vivia a plenitude da chamada "onda vermelha", com governos de esquerda instalados em quase todo o continente. Estaríamos assistindo agora a uma nova onda, conservadora, e ao enfraquecimento de governos populistas?
Não costumo pensar em termos de ondas. O que vejo ocorrer é um fortalecimento da democracia no continente. Sou um otimista. E creio que as novas gerações na América Latina estão se dando conta de que a via proposta por Chávez e Fidel é ruim, que a saída de "esquerda radical revolucionária socialista", todo esse delírio, não é viável nem conveniente. E os países da região estão agora flutuando entre governos ora mais conservadores, ora mais liberais, inclusive social-democratas. Nisso, o Brasil, por seu exemplo, jogou um papel fundamental.
Qual foi a contribuição brasileira à democracia no continente?
O Brasil teve, consecutivamente, três presidentes oriundos da esquerda - a acadêmica, a sindical e até a guerrilheira. Todos, no entanto, comprometidos com a democracia e a modernização. Conhecemos Fernando Henrique Cardoso nos anos 1960 e 70 como um teórico marxista e foi esse mesmo homem que logrou fazer as reformas liberalizantes no país. Lula também conseguiu se livrar de seu passado no sindicalismo radical e modernizar o Brasil. E Dilma, que cerrou fileiras com um grupo armado, mostra-se hoje um exemplo de racionalidade política. Diante do exemplo brasileiro, ficou evidenciado o absurdo de uma via populista para a América Latina. Não quero cantar nada em definitivo, mas talvez estejamos assistindo ao último adeus do populismo no continente. As exceções seguem sendo Venezuela e Argentina, esta última aprisionada por um peronismo que virou uma espécie de religião lá.
Com a saúde de Chávez comprometida, o sr. acredita que Rafael Correa, o jovem presidente equatoriano que estuda conceder asilo político a um ativista com cidadania britânica, Julian Assange, pode se tornar a nova liderança populista no continente?
Correa ganhou certo destaque, mas o Equador jamais terá o peso geopolítico de uma Venezuela, com suas imensas jazidas de petróleo. E o destino de Chávez será jogado nas eleições venezuelanas de outubro, que serão verdadeiramente históricas.
Nesse contexto de democracias promissoras, porém ainda frágeis, que o sr. identifica na região, que peso têm os avanços nos direitos civis e de minorias verificados nos últimos anos, como a aprovação do casamento gay na Argentina, a união civil entre pessoas do mesmo sexo no Brasil e a legalização da maconha no Uruguai?
A construção de uma cidadania moderna ainda levará muito tempo na América Latina. Isso porque nossos países herdaram uma cultura política oriunda de outras tradições. A tradição ibérica, tanto no Brasil quanto na América Hispânica, é bastante distinta do ideário moderno que ensejou a noção de indivíduo com direitos salvaguardados da ingerência do Estado. A ideia de um Estado central muito forte e determinante na vida das pessoas permanece firme na cultura política de nosso continente. Mas as lutas vão ocorrendo e as liberdades vão se ampliando entre nós. A verdade é que a democracia é um edifício que leva séculos para ser construído, pouco a pouco. E assim estamos fazendo. Penso que a América Latina está no bom caminho da democracia, a região está enfrentando seus problemas e ela avança.
FONTE: ALIÁS / O ESTADO DE S. PAULO
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