Entrevista – Octávio Amorim
Cristian Klein - Valor Econômico
Oposição rediviva, possibilidade de um desafeto ocupar a presidência da Câmara, bancada parlamentar do PT encolhida, situação econômica desfavorável e o risco de novos desdobramentos do escândalo da Petrobras atingirem o governo. Para o cientista político da FGV-Rio, Octavio Amorim, a presidente Dilma Rousseff começa o segundo mandato com as condições mais adversas já enfrentadas pelos petistas desde que subiram a rampa do Planalto, em 2003. "Dilma deverá ser uma presidente politicamente mais fraca do que foi no primeiro e do que havia sido Lula nos seus dois mandatos", afirma.
Apesar disso, Dilma e o PT podem superar as dificuldades pelo tempo de aprendizado ao longo de 12 anos. O manejo das rédeas do poder ensinou o pragmatismo até mesmo para a presidente, considerada ideologicamente mais rígida do que o antecessor.
No segundo mandato de Dilma, o PT deixará de comandar, pela primeira vez, três dos oito ministérios que vinha ocupando de modo ininterrupto - todos emblemáticos: Fazenda e Planejamento, preenchidos por Joaquim Levy e Nelson Barbosa, ambos sem filiação partidária, e Educação, alocada para o ex-governador do Ceará, Cid Gomes (Pros), a despeito de ser um carro-chefe da área social, tão cara à legenda.
Foi um movimento hábil, um "sinal luminoso", classifica Amorim, no qual Dilma reconhece, ainda que não explicitamente, que a correlação de forças, expressa nas apertadas eleições de outubro, se alterou.
A nomeação de Levy e Barbosa representaria, desse modo, um ponto de inflexão na era PT, uma grande concessão à oposição. Seu significado político poderia ser comparado às grandes coalizões de regimes parlamentaristas em que um partido se alia ao maior adversário para governar, como ocorre hoje na Itália e na Alemanha. "Dilma despartidarizou dois ministérios fundamentais para reduzir o conflito partidário", analisa Amorim.
O cientista político diz que a presidente "virou à direita" em relação à política econômica. Mas não comete estelionato eleitoral ao adotar o ajuste fiscal negado em campanha. Para o professor e pesquisador, essas "reversões programáticas" são práticas frequentes no Brasil e na América Latina.
Para estabilizar o segundo mandato de Dilma, acrescenta Amorim, a presença de Lula será fundamental. "Seu papel é o de evitar o estouro da boiada governista. É ele que vai ancorar as expectativas em relação à eleição de 2018, mesmo com a economia não indo tão bem como o PT gostaria".
A seguir, leia os principais trechos da entrevista ao Valor:
Valor: O segundo mandato de Dilma será realmente muito diferente do primeiro?
Octavio Amorim: Dilma deverá ser uma presidente politicamente mais fraca no segundo mandato do que foi no primeiro e do que havia sido o Lula nos seus dois mandatos. Isso porque as circunstâncias mudaram muito. Em primeiro lugar, a eleição foi apertada no segundo turno, o que deu grande moral à oposição, que ficou mais aguerrida; o fato de o PT - apesar de continuar sendo o maior partido na Câmara - ter perdido 18 cadeiras é uma derrota no contexto de um Parlamento pulverizado, e há a situação econômica que se vê mais à frente. Não se pode esquecer dos grandes riscos embutidos no escândalo da Petrobras. Ela já começa com isso. Enquanto Lula, no primeiro mandato, só teve que enfrentar uma enorme crise [o mensalão] em 2005.
Valor: E a relação com os aliados?
Amorim: Há latente conflito intracoalizão: um PT nacional mais fraco versus um PMDB mais forte no nível estadual e estável no plano nacional. E há um latente conflito intrapartidário: Dilma versus Lula. Devemos considerar também que Dilma não concorrerá à reeleição - ou seja, a partir de 2017 já será considerada um pato manco - que a economia passará por um momento difícil em 2015 e que os atores políticos já antecipam que o pleito de 2018 será muito difícil para o PT. Todos os três fatores favorecerão uma postura muito mais assertiva por parte dos aliados de Dilma, o que aumentará a probabilidade de conflitos. Não nos esqueçamos também o declínio acentuado da seção paulista do PT, que indica que a composição da liderança do partido vai mudar, o que também poderá gerar sérios conflitos interpartidários.
Valor: O PT superou o mensalão em 2005 numa época de aprendizado e quando não tinha uma ampla base aliada. Pelo tempo de experiência, as adversidades de hoje não são mais contornáveis?
Amorim: Esse é um bom ponto. Houve uma aprendizagem, que ficou clara na passagem do primeiro para o segundo mandato do Lula. Escaldado pelo mensalão, Lula aprendeu a usar o guarda-roupa do presidencialismo de coalizão, cuja melhor evidência é a integração plena do PMDB ao ministério e à base parlamentar do governo. No primeiro mandato, não havia sido assim. Agora, sem dúvida, o poder desgasta. Mas o aprendizado traz esse benefício. O PT já está pilotando a máquina do Estado há 12 anos, conhece profundamente as rédeas do poder e tem condições de reverter a atual situação política e econômica.
Valor: Qual o significado da indicação de Levy e Barbosa para a Fazenda e o Planejamento?
Amorim: O primeiro passo [para reverter a situação] foi a nomeação surpreendente de Joaquim Levy para o Ministério da Fazenda.
Valor: O PT tem se mostrado adaptável, camaleônico.
Amorim: Sem dúvida. Mesmo sob Dilma, que é tida como mais rígida ideologicamente do que Lula. Dilma mostrou flexibilidade ao aceitar as concessões de 2012 e agora, depois de uma campanha marcadamente de esquerda, nomeia um doutor por Chicago - a "alma mater" da ortodoxia liberal - para fazer um ajuste fiscal que ela não prometeu na campanha. É uma reversão programática considerável, o que supõe pragmatismo.
Valor: É estelionato eleitoral?
Amorim: Acho essa expressão muito forte. É usada pela oposição toda vez que vê esse tipo de episódio. Mas isso é uma prática frequente no Brasil e nas democracias latino-americanas. Já tivemos essas reversões programáticas - que é uma maneira mais isenta e superior de tratar o problema - em 1986, com o Plano Cruzado de José Sarney e do PMDB. Em 1989, a mesma coisa: Fernando Collor acusou Lula de querer sequestrar a poupança, e quando ele assumiu, em março de 1990, ele é que sequestrou a poupança. Fernando Henrique, em 1998, garantiu a manutenção da paridade do real com o dólar para ser forçado a desvalorizar o real em janeiro de 1999. E agora é a vez do PT. Essa reversões programáticas já aconteceram várias vezes na América Latina. A última imagem notória foi a de Ollanta Humala, no Peru, que fez uma campanha à esquerda e, logo depois de assumir, implementou uma política econômica à direita.
Valor: Dilma, ao escalar Levy, virou à direita?
Amorim: Virou à direita, exclusivamente, no que diz respeito à política econômica. Lula virou à direita, na política econômica, em 2003, mas virou à esquerda na política externa e social. Mais tarde, viraria à esquerda, no segundo mandato, sobretudo depois da crise mundial de 2008, em política econômica. E no primeiro mandato da Dilma implementou-se plenamente a chamada nova matriz econômica, que não teve êxito e agora o governo foi obrigado a retroceder - ou fazer essa reversão programática.
Valor: A indicação de Levy é um marco também em relação aos 12 anos de PT no poder?
Amorim: Sim, pois pela primeira vez, desde janeiro de 2003, o Ministério da Fazenda não será dirigido por um petista de carteirinha, como foram [Antonio] Palocci e Guido Mantega. Há um aspecto do perfil do Joaquim Levy que tem que ser devidamente analisado. Ele é apartidário, assim como Nelson Barbosa - ainda que ligado ao Lula, ainda que tenha servido a Dilma, ele não é filiado ao partido. Acho que essa é uma solução boa dado o equilíbrio político que emergiu no segundo turno. A eleição foi muito apertada. Teoricamente, poderíamos propor uma solução de governo de ampla coalizão entre centro-esquerda e centro-direita, entre PT e PSDB, como existe hoje na Itália do [primeiro-ministro Matteo] Renzi e na Alemanha da [chanceler Angela] Merkel.
Valor: A nomeação de Levy é uma concessão de Dilma à oposição que lembra acordos entre adversários em grandes governos de coalizão no parlamentarismo?
Amorim: Pois é, Itália e Alemanha são parlamentaristas. As últimas eleições nestes países foram apertadas, com a pequena diferença para a centro-direita de Angela Merkel e uma pequena diferença a favor da centro-esquerda de Renzi, na Itália. Qual foi a solução? Governo de ampla coalizão com o principal partido da oposição. Hoje, Merkel, da Democracia Cristã, governa em coalizão com os social-democratas. E Renzi, de um partido de centro-esquerda, o Partido Democrático, governa com a centro-direita que rompeu com [o ex-primeiro ministro Silvio] Berlusconi. No Brasil, essa solução seria interessante e, aliás, muita gente sonha com isso, que PT e PSDB se encontrem no governo. Mas o regime aqui é presidencialista, o que significa uma competição eleitoral de outra maneira. E nem o PT nem o PSDB tem hoje ânimo para esse tipo de governo de coalizão. Então, uma solução intermediária foi encontrada. Dilma, em vez de partidarizar com o PT e seus aliados, todos os ministérios, resolveu neutralizar politicamente dois ministérios absolutamente chaves: Fazenda e Planejamento. Neste sentido, me parece uma solução muito ajustada com o resultado que emergiu das urnas, em 26 de outubro.
Valor: O objetivo foi neutralizar a oposição?
Amorim: Não, foi neutralizar cargos vitais de modo a aplacar a oposição. Foi despartidarizar cargos fundamentais para reduzir o conflito partidário. Ou para reduzir o conflito entre governo e oposição no seu sentido mais amplo, em relação à sociedade, no enorme número de eleitores que votou no candidato da oposição [o senador Aécio Neves (PSDB-MG)], para as regiões e setores do país que estão irritados com o PT há 12 anos no poder.
Valor: No segundo mandato de Dilma, o PT deixará de comandar três dos oito ministérios que vinha ocupando ininterruptamente desde 2003. Todos são emblemáticos: Fazenda, Planejamento e Educação. É outro sinal de mudança?
Amorim: Isso é um sinal luminoso de que a presidente e que o próprio PT reconheceram a mudança na correlação de forças. Reconheceram implicitamente - publicamente isso jamais foi dito. Mas acho que é um bom sinal. Democracia supõe competição entre os partidos, mas também exige cooperação. É uma pena que o reconhecimento da força da oposição seja de maneira implícita, confusa, mas é a maneira possível. É melhor assim do que a confrontação permanente, aberta, como vemos na Venezuela e Argentina.
Valor: Há informações de que Dilma pretende ser menos centralizadora no segundo mandato, mas isso é factível num cenário de ajuste fiscal previsto para 2015?
Amorim: Essa é uma das grandes questões que paira sobre o país hoje em dia. O politólogo argentino Rosendo Fraga diz que é mais fácil mudar a ideologia de um presidente do que ele mudar a sua personalidade. O centralismo da Dilma tem mais a ver com traços da sua personalidade do que necessidades absolutas de sua base política. Mas as pessoas podem mudar. Principalmente, quando estão à beira do precipício. A classe política e o mercado monitorarão o relacionamento da Dilma com Joaquim Levy intensamente nos próximos meses e nos próximos anos.
Valor: A renegociação das dívidas dos Estados e municípios pode pavimentar o apoio político de governadores e prefeitos num momento de aperto fiscal, mas não é um risco para o equilíbrio das contas públicas?
Amorim: Depende, essa é uma grande questão. O Lula, por exemplo, fez uma série de concessões para os governadores, inclusive da oposição, em 2003, para conseguir aprovar a reforma da previdência, que foi fundamental para dar maior credibilidade à sua política fiscal. Sujar um pouco o ajuste fiscal em nome de lhe dar maior apoio político eu acho que é uma medida correta. E esse cenário é muito possível em 2015. Não veria com olhos negativos. Contanto que a presidente dê apoio às principais diretrizes do ministro da Fazenda. Numa democracia, nenhuma política governamental, por melhor que seja desenhada do ponto de vista técnico, funciona sem apoio político.
Valor: Qual será o papel do Lula?
Amorim: Fundamental, como porta-estandarte do futuro do PT. É a existência de um líder popular de peso como Lula que permitirá ao PT sinalizar aos seus aliados e ao mercado que em 2018 o PT continuará sendo um partido altamente competitivo para as eleições presidenciais.
Valor: Como candidato?
Amorim: Ele poderá ser ou não. Só será candidato se tiver boas chances de vencer. Ele já disse que não voltará para ser o [ex-piloto de F-1, o alemão Michael] Schumacher. Se a probabilidade de eleição for relativamente baixa, preferirá passar o bastão para outro candidato do PT, que terá que ser preparado. Lula terá o papel fundamental de evitar o estouro da boiada governista. É ele que vai ancorar as expectativas em relação a 2018, mesmo com a economia não indo tão bem, como o PT gostaria.
Valor: Se não for o candidato, como ele pode evitar o estouro da boiada? Ainda teria popularidade para fazer um segundo sucessor, depois da Dilma?
Amorim: Tudo é uma questão de "timing". O fundamental é Lula ancorar essas expectativas nos próximos dois anos, que serão os anos cruciais para o ajuste fiscal. Se o ajuste for bem sucedido, o PT e seu governo podem ir para a segunda fase do segundo mandato de Dilma com boas perspectivas e aí Lula poderá se candidatar. Se decidir que não, poderá preparar um candidato dentro do PT. Em 2009, o PT aceitou o nome da Dilma, apesar de ela não ser parte da liderança histórica do partido. Mas por que o PT aceitou? Por que Lula estava no auge de sua liderança. Não se sabe como Dilma estará em 2017. E se ela não estiver bem, o PT ainda conta com uma grande liderança, que é a do Lula. Então, Lula terá um papel fundamental, seja o de evitar o estouro da boiada governista seja o de tentar convencer Dilma a adotar políticas econômicas mais moderadas, como ele já certamente conseguiu com a nomeação de Joaquim Levy.
Valor: A construção de um plano B a Lula, ao longo do mandato, pode levar a uma luta interna pesada, entre, os mais cotados até agora, Aloizio Mercadante e Jaques Wagner?
Amorim: Se Dilma começar a patrocinar um candidato a partir de 2017, mas não estiver bem politicamente, o nome que ela preferir poderá ser alvo de forte oposição dentro do partido e aí poderá contaminar e enfraquecer o governo. Muito dependerá da estatura política de Dilma no momento de preparação desse candidato.
Valor: E a situação econômica?
Amorim: A economia é fundamental porque determina a popularidade da presidente e esta determina sua autoridade política perante seu partido e a base governista. É fundamental que a economia já esteja navegando bem em 2017, justamente para dar condições a Dilma de influenciar o candidato do PT em 2018 e sem sofrer grande oposição dentro do partido - ou que ele rache.
Valor: É possível haver um refluxo do antipetismo, que foi tão forte durante a eleição?
Amorim: Sim. A polarização foi um pouco artificial, gerada pelo contexto da campanha.
Valor: As manifestações por impeachment vão arrefecer ou podem voltar com revelações do escândalo da Petrobras?
Amorim: Estamos na mão do escândalo da Petrobras. A incerteza é muito grande. Mas há os trabalhos de uma colega canadense, Kathryn Hochstetler, que tem estudado as condições em que os mandatos presidenciais na América Latina, nos últimos 30 anos, terminam de maneira precoce. E são quatro as condições que ela alinha, que se cumpridas levam à queda prematura dos presidentes: falta de maioria parlamentar, amplas manifestações de rua, escândalos de corrupção e crises econômicas geradas por políticas neoliberais. Isso é a cara do governo Collor, por exemplo, ou do [Fernando] De la Rúa, na Argentina, nos quais os quatro fatores estavam presentes. Acho que Dilma não descuidará da maioria parlamentar. A política dela não será neoliberal. Ela fará um ajuste fiscal, mas isso fazem governos de esquerda, centro, direita - ajuste fiscal não é uma questão de preferência ideológica é uma necessidade. Então, os grandes riscos viriam de escândalos de corrupção - e temos aí o da Petrobras - e de manifestações de rua, por exemplo, com a retomada do espírito de junho de 2013, estimulado por novas revelações. Os outros dois fatores acho que não se cumprirão. De modo que a pior hipótese - a destituição de Dilma - não vejo acontecer.
Valor: Que risco Dilma corre caso seu desafeto Eduardo Cunha (PMDB-RJ) se eleja presidente da Câmara?
Amorim: O Eduardo Cunha tem sido demonizado mas é fundamental registrar que ele só é um candidato viável à presidência da Câmara porque representa bem as preferências de seu partido; tem tido uma atuação parlamentar muito aguerrida na defesa dos interesses do PMDB; e a bancada do PMDB do Rio é a maior bancada dentro do PMDB nacional. É um representante orgânico do PMDB. E o PMDB não é um aliado totalmente fiel de presidente algum.
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