• O choque do assassinato dos cartunistas se atenuará. Não pode ser esquecido é o amplo significado do crime para a democracia, regime sob ameaças de diversos tipos
O inominável assassinato de alguns dos melhores cartunistas franceses, na redação do jornal "Charlie Hebdo", quarta-feira, em Paris, por uma dupla de terroristas islâmicos nascidos na própria França, entrou com destaque na sangrenta crônica de desatinos cometidos em nome do sectarismo religioso. Desta vez, tendo como alvo evidente a liberdade de expressão e de imprensa, algo muito caro a qualquer democracia, regime enraizado na França, país em que há mais de dois séculos foram lançadas as bases da República moderna.
O choque do atentado uniu franceses e deflagrou uma corrente de solidariedade pelo mundo, expressa nos dizeres "Je suis Charlie", "Eu sou Charlie", estampados em cartazes e faixas difundidas pela internet, em várias línguas, a partir de incontáveis cidades, Rio entre elas.
Deve-se aproveitar a comoção para reflexões mais amplas e profundas sobre a gravidade e a natureza da tragédia francesa, e como ela afeta todas as sociedades, sempre dependentes da liberdade para funcionar de maneira saudável.
Cabe repetir: não se pode relativizar assassinatos, nada justifica o ataque ao jornal de humor. Nem mesmo, e muito menos, o seu teor satírico e anárquico.
O britânico Salman Rushdie, de origem indiana, sofreu longa perseguição dos xiitas devido ao seu livro "Versos satânicos", condenado pelo aiatolá iraniano Khomeini, autor de uma sentença de morte contra o escritor. Ao se solidarizar com o jornal francês, Salman destacou a sátira como "uma força contra a tirania". Qualquer que seja ela, gostemos ou não. A sátira está na essência do humor, a qual, como todo instrumento de expressão, não pode ter barreiras numa sociedade de fato livre. Salvo os limites previstos em lei, a título de reparo a quem se sinta atingido e decida recorrer à Justiça — sempre a posteriori.
Justificar, de forma mais tênue que seja, ataques às liberdades de expressão em geral e de imprensa em particular é enveredar por caminhos em cuja ponta final está a tragédia do "Charlie Hebdo".
Se na França a barbárie se sustentou na defesa de um deus — numa visão sectária, portanto doentia —, em regime autoritários latino-americanos a justificativa da censura e perseguição de profissionais é o combate à "miséria", a redenção do "povo".
É o que faz o chavismo bolivarianista, algoz das liberdades de expressão e imprensa. Outro símbolo desse desvio é o russo Vladimir Putin, de alma czarista, destruidor de instituições e liberdades, para alegadamente defender a Rússia de imaginários "nazistas". Há sempre um "inimigo externo" à disposição para justificar a ação violenta de déspotas contra adversários em geral e a imprensa profissional em específico.
O choque do assassinato dos cartunistas se atenuará. Mas não pode ser esquecido o amplo significado do crime para a democracia, regime sob ameaças de diversos tipos.
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