Após pedir, em carta aberta aos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), uma reação da Corte à flexibilização da política de armas no Brasil, o ex-ministro da Defesa e Segurança do governo Michel Temer, Raul Jungmann, disse ao Estadão que há preocupação nas Forças Armadas em relação à ofensiva do Palácio do Planalto. “O armamento da população significa também ferir o papel constitucional das Forças Armadas, o que é da maior gravidade. Cria-se outro polo de violência”, afirmou. Afastado da política, o ex-ministro atua no setor privado na área de tecnologia da informação.
Por
que a flexibilização do porte de armas pode significar uma lesão ao sistema
democrático?
Até
aqui o debate sobre armamento, desarmamento e controles se dava no âmbito da
segurança pública. O presidente transpôs esse campo e levou para a política no
momento em que defende o armamento dos brasileiros para defesa da liberdade.
Não vejo ameaça real ou imaginária. Ao mesmo tempo, ele consubstancia esse seu
desejo com mais de 30 regulamentações, seja através de lei, decreto ou
portaria. Estamos diante de um fato muito preocupante para todos nós.
Por quê?
A certidão de nascimento do Estado nacional é exatamente o monopólio da violência legal. A primeira que preocupa muito é a quebra desse monopólio. Quem dá suporte a esse monopólio, que é fundamental para a sobrevivência do estado democrático, são as Forças Armadas. O armamento da população significa também ferir o papel constitucional das Forças Armadas, o que é da maior gravidade. Cria-se outro polo de violência. Por último, na medida em que não se vê ameaça externa sobre a Nação, isso só pode apontar para um conflito de brasileiros contra brasileiros. Um cenário horripilante de um flagelo maior, até uma guerra civil. Essa é uma preocupação que precisa de uma resposta da parte dos demais poderes, do Supremo Tribunal Federal e do Congresso Nacional. Caso contrário, pode se repetir aqui o que aconteceu nos Estados Unidos, no Capitólio, lembrando que temos eleições em 2022. Se cada brasileiro é responsável pela própria segurança, então não precisamos de segurança pública e força policial.
Como
o sr. avalia a proposta do excludente de ilicitude?
Só
agrava o que está ocorrendo. Reduz os controles sobre a força policial,
lembrando que o Código Penal já tem os instrumentos necessários para lidar com
essa questão. Toda nação democrática tem regulamentos rígidos para a concessão
do direito à posse e ao porte de arma. Não estou me posicionando contrário ao
cidadão que cumpriu as regras e, de acordo com a lei, tem a posse ou porte de
armas. Não se trata de negar o direito a esse cidadão, mas, quando se fala em
armar a população, estão dizendo outra coisa. Estão falando em uma situação que
pode descambar para um clima de violência generalizada. É isso que temos que
exorcizar.
Não
é contraditório que um presidente tão ligado às Forças Armadas e com tantos
militares no governo tenha adotado uma bandeira que ameaça a instituição?
Não
represento as Forças Armadas, mas sei que existe uma preocupação com isso.
Recentemente, o Departamento de Fiscalização de Produtos Controlados do
Exército baixou duas normas que visavam ao rastreamento de armas e munições.
Isso é fundamental para o esclarecimento e redução da violência. Por
determinação do Executivo, essas duas normas foram revogadas. O general que
cuidava desse departamento pediu exoneração. Fica claro que a disposição das
Forças Armadas é pela rigidez no controle. O Executivo está jogando no sentido
contrário. Mas, de fato, há apreensão.
Como
foi a repercussão da carta do sr. ao Supremo?
A
resposta de todos os ministros do Supremo com os quais eu tenho acesso e me
comunico foi no sentido de que há uma preocupação.
Como
avalia o argumento de que arma é garantia de liberdade da população?
A
garantia da liberdade está na democracia, no respeito à Constituição e aos
poderes. Não há ameaça pesando sobre a liberdade dos brasileiros e brasileiras,
real ou imaginária. Isso atende muito mais a uma preocupação política e
ideológica de atender aqueles que são sua base eleitoral. Esse armamento pode
nos levar a uma tragédia. Quanto mais se liberam armas, mais corremos risco que
ocorra aqui o que ocorreu no Capitólio.
Argumenta-se
que a compra de armas é para caçadores e colecionadores, mas eles usam fuzis
para essa prática?
Fuzil
é uma arma de uso restrito. Não é uma arma para colecionador ou para clubes
esportivos de tiro. Fuzil é uma arma exclusivamente voltada para o combate ao
crime pesado e ao uso na guerra. Não faz nenhum sentido essa liberalização,
pelo contrário.
Há
pressão da indústria das armas?
Ela
sempre existiu. Sempre lidamos com ela.
Como
vê o argumento de que os brasileiros têm o direito de se proteger e, se muitos
possuírem armas, o criminoso pensaria duas vezes antes de agir?
A legislação já permite isso. Comprovada a necessidade e a capacidade técnica e psicológica, o brasileiro que cumprir os mandamentos legais tem direito a isso. É uma falácia. A primeira vítima é a própria pessoa. Onde você vai guardar uma arma em casa? Na gaveta? Embaixo da cama? Todo bandido tem a vantagem da surpresa. E, se for para cada brasileiro dar conta da própria segurança, para que segurança pública? Quando uma população é armada vemos o que acontece na Síria, Iraque e Venezuela. Há uma tragédia nacional.
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