Imunidade
parlamentar não é passaporte para a delinquência política
Quem
pergunta se a liberdade
de expressão tem limites ou está mal informado ou mal intencionado.
Quem invoca essa liberdade como mantra encantatório que valida moral e
juridicamente qualquer estupidez falada não entendeu nada. Ou dissimula.
Se
pudesse formular uma pílula de conhecimento cívico para vacinar cidadãos contra
a ignorância
sobre liberdade de expressão, eu não começaria pela máxima "nenhum
direito fundamental é absoluto" ou "a liberdade de expressão tem
limites", lugares-comuns que deixam muito a dever. Sugeriria uma pílula
alternativa: "Os limites da liberdade de expressão não se referem só a o
'quê' se fala em cada ocasião, mas a 'quem' fala". Daí começamos melhor.
Você
pode cometer crime pelo "quê" fala se: caluniar, difamar, injuriar,
ameaçar, fazer apologia de crime, incitar, praticar ou induzir discriminação,
impedir livre exercício dos Poderes. Estão espalhadas por diversas normas (Constituição,
Código Penal, Lei Caó e etc.). E a violação ainda pode gerar o dever de
pagar indenização por danos morais.
Mas a vida não é simples assim. A aplicação desses verbos a casos concretos se depara com muitas pedras pelo caminho. Saber, por exemplo, se piada de humorista somente ofendeu ou se cruzou linha proibida a ponto de humilhar e incitar discriminação é das responsabilidades maiores de duas senhoras: a jurisprudência e a doutrina jurídica. Elas não oferecem fórmula matemática nem algoritmo, mas critérios que vão ganhando densidade caso após caso.
Essas
senhoras cambaleantes da cultura jurídica brasileira precisam construir
previsibilidade e coerência. Devem notar nuances, indicar diferenças que
importam. Sem isso não podemos separar o joio do trigo. Vira um tudo ou nada,
um "acho que sim, acho que não", um duelo ilusório entre liberdade e
autoritarismo. É no raciocínio binário que mora a burrice jurídica.
Para
complicar, importa "quem" fala. A
liberdade de autoridades públicas não é a mesma de um cidadão da esquina.
Não
é a mesma coisa quando: presidente
diz que te odeia e vai te enviar para a ponta da praia; vice-presidente diz
que índio é preguiçoso; deputado defende tortura e ditadura; juiz do STF
palestra sobre cleptocracia do PT e saúda a Lava Jato (e dois anos depois a
chama de "organização criminosa"); promotor classifica críticos da
Lava Jato de "juristas da orcrim".
Não
é a mesma coisa quando: general tuíta homenagem a Ustra, e clube de generais
espalha notícia falsa; policial vira youtuber, filma operações de guerra e
celebra suas "balas perdidas"; dirigente de agência reguladora como a
Anvisa participa de aglomeração sem máscara ao lado do presidente.
Agentes
de Estado se sujeitam a regime diverso da liberdade de expressão. É por
intermédio deles que o Estado fala —do presidente ao guarda da rua, do juiz ao
militar. É por meio da conduta desses agentes que instituições buscam se
despersonalizar, se despolitizar e se despartidarizar.
Precisam
seguir rituais de imparcialidade, liturgias e padrões de decoro. Cidadãos
comuns, não. Assumem compromisso ético e performativo. Sua conduta pública
educa ou deseduca pelo exemplo, encoraja ou desencoraja. Estão sujeitos, por
isso, a regulações e sanções extras: crime
de responsabilidade, quebra de decoro, violação da ética profissional e
etc.
A
imunidade parlamentar dá ao deputado liberdade de expressão qualificada, não
ilimitada. Ajuda a democracia a produzir melhores debates, não o deputado a
delinquir. E a condição de deputado também traz restrições qualificadas à sua
liberdade de expressão: não é a mesma coisa um deputado
e o fulano do bar defender a ditadura e a tortura. Parlamentar pode mais ou
pode menos que um cidadão comum, conforme o caso.
Calibrar
a liberdade é o feijão com arroz rotineiro dos direitos fundamentais. Isso se
faz por justificativa pública e juridicamente fina, exercício liberal e
republicano, não autoritário (equívoco de Catarina Rochamonte e Atila Iamarino
em colunas recentes). Bem diferente de restringir a liberdade arbitrariamente,
por ato irracional de força bruta. Valores, objetivos e direitos
constitucionais se chocam. Nem sempre a liberdade deve triunfar sem qualquer
tempero.
A
democracia começa na liberdade de expressão. A democracia termina no abuso da
liberdade de expressão. A democracia deve se defender desse risco e observar
"quem" está falando.
*Conrado Hübner Mendes, Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt.
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