Tivemos
Estados fortes e fracos, mas pouco discutimos que a segmentação entre Estado e
sociedade tem como consequência isentar a responsabilidade e o peso da
sociedade junto ao Estado
Eis
uma pergunta legítima para quem, desde o final dos anos 50, tem se dedicado a
tentar enxergar o seu país pela “rua” sem esquecer a “casa” e o “outro mundo”,
escapando das sociologias nas quais o óbvio protagonismo da língua e dos
costumes é excluído pelo foco no que se entende por “política” (em que partidos
viram dinastias e súcias) e “economia” vista apenas como mercado. Um cenário no
qual o “cultural” não existe, pois as elites se omitem, atribuindo às leis
impessoais da realidade política e do mercado essa nossa impiedosa viagem
marcada por uma indigna desigualdade.
Estudos
de economia e política são legião no Brasil. Neles, o País é lido de fora para
dentro como se o sistema nacional não tivesse singularidades históricas e
sociais. A morada com suas regras e seus costumes, por exemplo; a religião que
foi um catolicismo exclusivista; o regime que foi monárquico e um sistema de
relacionamentos pessoais indiscutíveis.
Num ensaio cuja contemporaneidade é patente, pois passamos todo o tempo falando disso, Oliveira Vianna examina “O papel dos governos fortes no regime presidencial” (publicado em 1923, no livro Pequenos Estudos de Psicologia Social) e sugere que um fator essencial de nossa “psicologia política” seria “a incapacidade moral de cada um de nós para resistir às sugestões da amizade e da gratidão, para sobrepor às contingências do personalismo os grandes interesses sociais, que caracterizam a nossa índole cívica e definem as tendências mais íntimas de nossa conduta no poder”.
Eis
uma pergunta essencial, pois o que o Brasil diz para mim é justamente essa
capacidade de politizar tudo, menos as nossas relações pessoais e as suas
éticas. É justo nessa fronteira entre o pessoal e o impessoal que jaz tanto o
“você sabe com quem está falando?” quanto os autoritarismos negacionistas de
todos os tipos. Da pandemia e da vacina sem nenhuma dúvida, mas igualmente dos
foros privilegiados que julgam de modo diferenciado um mesmo delito. Com eles,
a lei vale mais para uns do que para outros. É essa oscilação circunstancial e
claramente pessoal que chama a minha atenção quando encaro o Brasil como pátria
amada e objeto sociológico objetivo.
Devo
observar que corrigir a generosa e ampla ética das relações sociais do Brasil
por meio de um “estado forte”, como considera Oliveira Vianna, tem sido
aplicado e está novamente no mapa. Corrigir a sociedade pelo Estado ou pelas
leis é um dogma entre nós. E o dogma fala mais de uma ilusão do que de um
remédio eficaz. O que ela revela é a separação relativamente absoluta entre
“governo” e cultura ou estilo de vida. Tomando como vilão apenas os governos e
o Estado, esquecemos convenientemente do nosso papel e, atribuindo tudo ao
governo, Estado ou administração pública deixamos de olhar criticamente a nossa
própria condição de fidalgos e “homens bons” - gente que fura todas as filas,
inclusive as da vacina.
A
segregação entre “casa e rua”, que até hoje nos persegue (porque a casa é
inocente e a rua é bandida), esquece que os mais exaltados “governos fortes” e
as ditaduras foram ou são exercidos por nossos colegas, amigos, compadres,
parentes e subordinados. Nenhum governo conseguiu encarar o fosso entre a
morada e a vida pública nas suas mais claras contradições, pois a casa é
monárquica, a rua, republicana! Na casa existe uma dura hierarquia de gêneros e
idades, na rua há uma surpreendente igualdade que, quase sempre, nos obriga a
usar o “você sabe com quem está falando?” como um ritual de distinção.
Não
deve ter sido por acaso que a passagem da monarquia para a República foi
realizada por terríveis rompimentos com elos pessoais. Novas concepções de como
se relacionar com Deus e de como limitar o luxo e o poder dos nobres tiveram um
papel básico nas relações com aqueles que ocupavam um papel superior.
Disciplinar funcionários do Estado foi fundamental no caso das primeiras
burocracias - dos primeiros requisitos para mudar o feitio e o estilo de
governar legal e politicamente para todos.
No
caso brasileiro tivemos Estados fortes e fracos, mas pouco discutimos que a
segmentação entre Estado e sociedade tem como consequência isentar a
responsabilidade e o peso da sociedade junto ao Estado. No fundo, mantemos até
hoje em separado entidades que estão entrelaçadas, posto que o Estado é a
sociedade e os seus estilos de vida e vice-versa.
Conclusão: o que eu aprendi com o Brasil foi que a sociedade ainda não se entendeu com o Estado. O jogo do empurra-empurra de dizer que a sociedade estava errada no século 19 e de repetir a dose, usando o mercado e a política no século 20 e 21, tem que mudar. Tanto o Estado quanto nós, sociedade, temos de nos assumir como parte de um todo. Sem isso, o suicídio fica ainda mais perto...
PS: Quando um presidente eleito diz que “se tudo dependesse de mim não seria esse o regime” ele deixa passar o desgosto e a aversão com a democracia representativa, a qual ele jurou solenemente defender. É lamentável.
*É antropólogo social e escritor, autor de ‘Fila e Democracia’
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