Revista Veja
Um grande país se faz com fidelidade a
ideias e visões de longo prazo, e requer alguma frieza diante das paixões da
hora
Esqueça por um momento que você simpatiza
com esse ou aquele lado nas eleições. Sejamos razoáveis: há algo muito
estranho, para dizer o mínimo, com um pacote de 41 bilhões de reais em
“bondades na veia”, como definiu para mim um colega, a menos de três meses das
eleições. Se alguém discordar, sugiro fazer um velho jogo dos filósofos:
inverta sua posição. Se você é simpático a Bolsonaro, imagine que Lula estivesse aumentando em
50% o valor do Bolsa Família às vésperas das eleições; se você é lulista, tente
pensar se você não iria, lá no fundo, gostar da ideia. Pois é. O ponto é que em
uma República não é assim que as coisas devem funcionar.
Há muitas lições nessa “PEC das bondades”, que prefiro chamar de “PEC do jeitinho brasileiro”, votada no Congresso. Não é a primeira vez que nosso mundo político faz isso, mas agora chegamos ao estado da arte. Seu primeiro jeitinho é a definição de estado de emergência. Não há enquadramento para isso no Brasil atual. A economia vem ganhando fôlego, cresceu acima das expectativas no primeiro semestre, o país gerou mais de 1 milhão de empregos formais só neste ano, e temos o maior número de carteiras assinadas da série histórica do Caged. É evidente que continuamos com uma montanha de problemas estruturais. Baixa produtividade, educação pública pífia, Estado caro e ineficiente. Agora temos o drama psicanalítico da Petrobras, a qual queremos que funcione com autonomia, com regras de mercado, e ao mesmo tempo cumpra uma “função social”. A solução, empurramos com a barriga.
O segundo é a regra do teto de gastos. O
teto foi criado em 2016 para conter o desastre fiscal que levou à enorme crise
de 2015/2016. Gosto de comparar o teto com uma operação bariátrica. Ninguém
gosta de fazer, mas de repente é a solução para um problema que fugiu ao
controle. O teto foi nossa âncora fiscal. Deu alguma previsibilidade à política
fiscal, permitiu a redução sustentável da taxa de juros, até a pandemia, e
induziu reformas, como a previdenciária, ainda que tenhamos feito o trabalho
pela metade. Mas seu maior ganho é normativo. Como diz Marcos Mendes, “todos
queremos estabilidade fiscal, no longo prazo, pois isso garante menos inflação
e mais crescimento, mas, no curto prazo, todo mundo tem um bom motivo para
gastar um pouco mais”. A missão do teto é esta: conter a tentação do curto
prazo. Criar uma lógica objetiva de responsabilidade fiscal, segundo a qual é
preciso fazer escolhas. Queremos dar mais 200 reais no Auxílio Brasil? Ok,
corte-se do outro lado. Uma visão sustentável do país, capaz de nos proteger de
surtos de populismo. Do tipo exato que estamos vivendo agora.
Por fim, demos um jeito na legislação
eleitoral. Em 1997, o Congresso aprovou a lei eleitoral, proibindo a criação de
benefícios, em ano eleitoral, exatamente para que coisas como essa PEC não
acontecessem. Em primeiro lugar, porque há sempre boas razões para que o mundo
político seja generoso com o dinheiro do contribuinte. É perfeitamente
plausível que o país tenha uma renda mínima mais robusta que os atuais 400 reais.
Não há problema, em tese, que ela seja fixada nesse patamar de meio salário
mínimo, como sugere a PEC. O único detalhe é que isso jamais deveria ser feito
à luz de ganhos eleitorais de curto prazo. É esse o sentido da lei eleitoral, e
isso vale para qualquer partido, qualquer candidato e qualquer eleição. O
governo teve desde janeiro de 2019 para se preocupar com isso. Não o fez. A
oposição, por sua vez, votou unânime a favor da PEC, ao menos no Senado. Disse
que era um “estelionato eleitoral”, mas votou com a mesmíssima lógica do
governo: a lógica das eleições.
“Um grande país se faz com fidelidade a
ideias e visões de longo prazo”
Entra aí o tema fascinante do jeitinho
brasileiro. Sua lógica é a seguinte: há um conjunto de normas, que nós mesmos
criamos para que as coisas funcionem melhor, mas há a tentação do curto prazo.
“Sei que eu estou fora do prazo”, diz o cidadão no guichê da repartição, ou
“sei que bebi um pouco além da conta”, diz o motorista na blitz da Lei Seca,
“mas você tem como dar um jeito?”. Há quem veja isso como traço positivo de
nossa personalidade. Da nossa capacidade de improvisar e resolver problemas. Já
há quem diga que tudo vem da nossa recusa da norma abstrata. Da recusa da
igualdade de todos, como “indivíduos”, em nome da “pessoa”, em geral quem tem
poder, como sugeriu Roberto DaMatta. A recusa dos rigores do mundo das regras
que valem para todos, base do sucesso das sociedades liberais avançadas. Foi
esse o toque de Sérgio Buarque em seu Raízes
do Brasil. A “cordialidade”, típica do nosso caráter, era a
antessala do jeitinho. Da capacidade de dar um drible e resolver tudo no plano
das relações pessoais. Nessa PEC tem de tudo um pouco. A ideia da norma é
que vale, mas se o governo tem maioria, e a oposição não tem coragem, então não
vale tanto assim; o apelo ao sentimento, sobre “esses milhões de pessoas que
estão precisando”; a ideia autoindulgente de que “é só desta vez”, que ninguém
é contra nenhuma regra, mas que é “preciso ter sensibilidade”.
Alguém poderia perguntar: mas tinha alguma
alternativa? O truque de uma medida como essa é sempre passar a ideia de que há
uma “urgência”, e que, mesmo com o nariz torcido, é preciso votar. A resposta é
simples: é claro que há alternativas. A primeira delas é evidente: criar
despesa de um lado, reduzindo-se do outro. Nos últimos meses, o Congresso engavetou
a reforma administrativa, congelou a PEC dos penduricalhos, que daria um fim
aos supersalários (acima do teto constitucional), aprovou um fundão eleitoral
de 5 bilhões de reais, 16 bilhões para as emendas de relator e não tomou
nenhuma medida para cortar despesa na estrutura da máquina estatal.
São escolhas. Não acho que o Brasil viva um momento de terra arrasada. Reformas importantes foram feitas nos últimos anos. Da Lei das Estatais, que hoje reforça a autonomia de gestão de uma empresa como a Petrobras, até a lei das agências reguladoras, de 2019, que permite ao presidente da Anvisa peitar o presidente da República. Da reforma trabalhista, que modernizou, ainda que timidamente, nossas relações de trabalho, passando pelo marco do saneamento, que vem induzindo investimentos em um setor-chave para a redução da miséria no país, até a autonomia do Banco Central, que permite hoje uma política técnica e sem interferência política no combate à inflação. Cito essas coisas para dizer que é um brutal erro dar marcha a ré. Escorregar nos velhos vícios, como vemos nessa PEC. E isso vale para qualquer governo, e qualquer oposição.
Um grande país se faz com fidelidade a ideias e visões de longo prazo, e requer alguma frieza diante das paixões da hora. Reconheço não ser um bom momento para dizer essas coisas, a menos de três meses de uma eleição presidencial. Mas no fundo é a lição que, mais dia, menos dia, teremos de aprender.
*Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
Publicado em VEJA de 13 de julho de 2022, edição nº 2797
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