sábado, 9 de julho de 2022

Conto | Graziela Melo*: Bug, a triste história de um cão vagabundo

Bug sentiu a dor do pontapé, bem no miolo de suas entranhas, como se tudo tivesse se espatifado por dentro. A força bruta do homem o atirara no meio da rua. Rolou um pouco e foi dar com as costelas no meio-fio, no outro lado do calçamento. Ali ficou. Revirou-se de barriga para baixo e grunhiu baixinho.

Passados os momentos lancinantes da dor, ao cabo de tudo, sentiu-se melhor ao valorizar o fato de estar vivo e inteiro. Alguns cachorros da rua, vagabundos como ele, se aproximaram de orelhas em pé, para saber o que havia ocorrido. Naquele ponto eram comuns os acidentes. O dono do açougue era homem violento e odiava cães. Fedorentos, magros e sarnentos, faziam ponto na calçada em frente ao fiteiro, na assim chamada, vitrine de cachorro, estorvando e amedrontando as madames que iam pegar o seu filé.

Só de pura ruindade, os ossos que não vendia, mandava jogar no canal, mas não dava aos cachorros nem a ninguém. Quantas e quantas vezes, Bug tivera, bem como seus amigos, de meter o focinho dentro daquela lama podre, para faturar um osso pelado?

Pouco a pouco os cães foram se dispersando. Só Bug, com a barriga e as dianteiras estendidas no chão, pôs-se a refletir. Cometera uma imprudência. Mais que isso: uma temeridade. Há dias que não via a cor de um osso. Nem pito de pele. Nem uma mordisquinha sequer. O lixo, nem falar. Mais que limpo, andava ensaboado! Tempos duros. Em quase dez anos de sua canina vida, nunca vira um lixo tão limpo. Nada que cheirasse a proteína. Só lata vazia e papel higiênico usado. Havia uns que nem isso. Desse jeito, sua dieta fora para o beleléu. Fora impelido por essa fome canina que cometera a loucura de se atirar sobre aquele pedaço de pele que balançava na mão do açougueiro. Depois não vira mais nada. Só a dor do ponta-pé na barriga, quando saíra voando até o outro lado da rua.

Quantas humilhações e sofrimentos já havia passado depois que sua dona morrera! D. Engracia não era uma dona. Era uma mãe cachorra. Adivinhava seus pensamentos! Nunca deixara que lhe faltasse carne, nem osso. Tomava seu banho diário e nunca soubera o que fosse uma pulga. Sarna? Nem falar. E aquele cheirinho bom de cão que gosta de seu dono que ela tinha? Os passeios na rua, depois a comida gostosa e o sofá macio. Nunca lhe batera. Nem um muchicão sequer. Nem costumava despreza-lo ou prende-lo quando chegava visita. E era cada visita chata que aparecia por lá! Tinha uma velhota que ficava olhando para ele de bandinha, com cara de cavilosa, pelo rabo do olho para ver se sua dona o enxotava da sala. Mas ela nem-nem. Fingia que não estava entendendo e ia deixando ele no seu cantinho morno de sofá.

Lembrava-se perfeitamente daquele fatídico e malfadado domingo em que ela se fora deste mundo. A partir daquele dia, tudo mudara em sua vida. Soubera o que os humanos chamavam de mundo cão.

D. Engracia morrera sentada em sua cadeira de balanço, como se nada. Ele junto, enroscado em seus pés. De repente a cabeça dela pendera para um lado e assim ficara, com um olhar vago a mirar para o nada. Bug percebeu que algo de errado ocorrera com sua dona e pôs-se a lamber-lhe a mão. Mas ela permanecera imóvel até a noite quando a vizinha assustada com seus latidos entrou na casa e viu aquela desgraça toda.

Filho veio do Rio para o funeral. A casa se encheu de gente. Mas ninguém se importava com ele. Sofreu e chorou suas primeiras dores de cachorro só. Acompanhou aquela multidão até o cemitério. Esperou que todos saíssem e enroscou-se sobre a lápide do túmulo e curtiu sua saudade sem pressa nem testemunho. De vez em quando espantava as moscas que o perseguiam na desgraça. Adormeceu quando surgiram os primeiros raios de sol, espreguiçou-se. Despediu-se de quem tanto amara e procedeu ao caminho de volta. à casa. Mas a casa já não era a sua. Arranhou a porta. Ninguém abriu. Deu a volta pelo oitão e olhou pelos fundos. Só tristeza e silencio. Um vento leve nas folhas do quintal. Ainda podia sentir de longe, com seu faro arguto, os cheiros da roupa dela. dos objetos, do cantinho bom do sofá. Saiu andando pela rua sem destino. Na esquina olhou para trás. Uma lágrima de cachorro lhe escorreu focinho abaixo.

*Crônicas, contos e poemas, p. 41 , Abaré Editorial / Fundação Astrojildo Pereira, 2008

2 comentários:

Anônimo disse...

O cão é o
Nosso melhor amigo, temos 2 e são tratados como de fossem humanos , as vezes sentimos que estamos cometendo uma injustiça por acha-lós como nós , pois eles são muito mais do que isto. São gratos, nos amam de verdade e não conhece o fingimento. Quando faço a carninha que tanto gostam me lambe os pés em agradecimento,‘algum ser humano faz isto?

ADEMAR AMANCIO disse...

Fiquei com pena do cachorro,muita pena!