sábado, 9 de julho de 2022

Carlos Alberto Sardenberg: Nem a Constituição pegou no Brasil

O Globo

Sabem o que mais impressiona? A ampla maioria a favor da PEC Kamikaze, incluindo as oposições variadas

Considerando que muitas leis não pegam no Brasil, pessoas de boa-fé, dentro e fora do sistema político, entenderam, ao longo de décadas, que normas realmente importantes deveriam ser gravadas na Constituição. Assim foi feito — por isso nossa Carta Magna é tão extensa. E tão descumprida e emendada.

Está acontecendo de novo.

Em 15 de dezembro de 2016, governo Temer, foi sancionada a Emenda Constitucional número 95. Estabelecia um novo regime fiscal, baseado na novíssima regra do teto de gastos. Por ela, se determinava que a despesa do governo federal num determinado ano seria igual à do ano anterior mais a inflação. Vigência: até 2036.

Ideia boa: com isso, o gasto público permaneceria constante em termos reais. Com o esperado crescimento do país, o peso (excessivo) do setor público seria reduzido em relação ao privado. As contas do governo seriam colocadas em rota de equilíbrio — o tão falado equilíbrio fiscal —, reduzindo déficits e dívida pública.

Mas esses eram exatamente os objetivos da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), legislação infra-constitucional sancionada em 4 de maio de 2000, na gestão FH. Parte importante da consolidação do real, a norma determinava que o Orçamento do governo federal deveria ter metas explícitas de receitas e despesas, prevendo superávit primário, de modo que sobrassem recursos para a amortização progressiva da dívida pública.

Para espanto de muitos, a regra funcionou corretamente durante muitos anos. Na primeira gestão de Lula — para surpresa de muito mais gente —, o governo federal produziu superávits enormes, de até 4,5% do PIB, colocando a dívida em queda e garantindo o ajuste fiscal.

Ainda no primeiro mandato, Lula começou a retomar a expansão do gasto público. A economia mundial ajudava, o governo tinha mais dinheiro. De todo modo, a regra básica da LRF foi mantida.

Dilma estragou tudo. Baseada na tese de que o gasto público tinha poderes universais — servia para melhorar tudo —, a presidente inventou as pedaladas fiscais para aumentar a despesa em termos reais, fingindo manter a meta de superávit.

Teria sido melhor se tivesse proposto Emenda Constitucional para mudar o regime fiscal. Melhor no sentido de que colocaria a questão em debate aberto. Mas, como isso poderia pegar mal e gerar crises de confiança, Dilma optou pelos truques — como espetar despesas do governo federal na Caixa e no Banco do Brasil.

Conhecem o resultado. Déficits, dívida, juros mais altos, inflação, recessão.

Vem o governo Temer com o objetivo de restaurar o equilíbrio fiscal. Como a LRF não pegara, optou-se pela Emenda Constitucional, aquela de número 95.

Ingênuos pensaram: agora ninguém mais rasga.

Rasgaram. E não foi o PT, mas um governo que se apresentara como antipetista, com apoio do Centrão, súcia de partidos e blocos parlamentares cuja vida política está centrada no gasto de dinheiro público conforme seus interesses eleitorais.

Assim chegamos à PEC Kamikaze, uma proposta de Emenda Constitucional para burlar a Constituição e permitir que o governo federal gaste fora do teto.

Eis o país de novo no ambiente do desequilíbrio das contas públicas, com mesmas consequências de antes. Por exemplo: o dólar caro, fonte adicional de inflação.

Sabem o que mais impressiona? A ampla maioria a favor da PEC, incluindo as oposições variadas. Mais ainda: o candidato favorito, Lula, diz que esse negócio de teto de gasto é uma furada, coisa do mercado financeiro. Aliás, prometia acabar com o teto. Não precisa mais. Bolsonaro e o Centrão já fizeram o serviço.

Assim, os dois principais candidatos e a maioria do Congresso, que deverá ser reeleita, anunciam que se fartarão no gasto público. Como cada setor do eleitorado acha que será especialmente beneficiado com esse gasto, a farra fiscal está garantida.

As consequências também, de novo: inflação, juros altos, baixo crescimento econômico.

Considerando que a Emenda Constitucional do teto de gastos não pegou, a que outra legislação se poderia recorrer?

Biblia talvez?

Nenhum comentário: