O Globo
Sabem o que mais impressiona? A ampla
maioria a favor da PEC Kamikaze, incluindo as oposições variadas
Considerando que muitas leis não pegam no
Brasil, pessoas de boa-fé, dentro e fora do sistema político, entenderam, ao
longo de décadas, que normas realmente importantes deveriam ser gravadas na
Constituição. Assim foi feito — por isso nossa Carta Magna é tão extensa. E tão
descumprida e emendada.
Está acontecendo de novo.
Em 15 de dezembro de 2016, governo Temer,
foi sancionada a Emenda Constitucional número 95. Estabelecia um novo regime
fiscal, baseado na novíssima regra do teto de gastos. Por ela, se determinava
que a despesa do governo federal num determinado ano seria igual à do ano
anterior mais a inflação. Vigência: até 2036.
Ideia boa: com isso, o gasto público
permaneceria constante em termos reais. Com o esperado crescimento do país, o
peso (excessivo) do setor público seria reduzido em relação ao privado. As
contas do governo seriam colocadas em rota de equilíbrio — o tão falado
equilíbrio fiscal —, reduzindo déficits e dívida pública.
Mas esses eram exatamente os objetivos da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), legislação infra-constitucional sancionada em 4 de maio de 2000, na gestão FH. Parte importante da consolidação do real, a norma determinava que o Orçamento do governo federal deveria ter metas explícitas de receitas e despesas, prevendo superávit primário, de modo que sobrassem recursos para a amortização progressiva da dívida pública.
Para espanto de muitos, a regra funcionou
corretamente durante muitos anos. Na primeira gestão de Lula — para surpresa de
muito mais gente —, o governo federal produziu superávits enormes, de até 4,5%
do PIB, colocando a dívida em queda e garantindo o ajuste fiscal.
Ainda no primeiro mandato, Lula começou a
retomar a expansão do gasto público. A economia mundial ajudava, o governo
tinha mais dinheiro. De todo modo, a regra básica da LRF foi mantida.
Dilma estragou tudo. Baseada na tese de que
o gasto público tinha poderes universais — servia para melhorar tudo —, a
presidente inventou as pedaladas fiscais para aumentar a despesa em termos
reais, fingindo manter a meta de superávit.
Teria sido melhor se tivesse proposto
Emenda Constitucional para mudar o regime fiscal. Melhor no sentido de que
colocaria a questão em debate aberto. Mas, como isso poderia pegar mal e gerar
crises de confiança, Dilma optou pelos truques — como espetar despesas do
governo federal na Caixa e no Banco do Brasil.
Conhecem o resultado. Déficits, dívida,
juros mais altos, inflação, recessão.
Vem o governo Temer com o objetivo de
restaurar o equilíbrio fiscal. Como a LRF não pegara, optou-se pela Emenda
Constitucional, aquela de número 95.
Ingênuos pensaram: agora ninguém mais
rasga.
Rasgaram. E não foi o PT, mas um governo
que se apresentara como antipetista, com apoio do Centrão, súcia de partidos e
blocos parlamentares cuja vida política está centrada no gasto de dinheiro
público conforme seus interesses eleitorais.
Assim chegamos à PEC Kamikaze, uma proposta
de Emenda Constitucional para burlar a Constituição e permitir que o governo
federal gaste fora do teto.
Eis o país de novo no ambiente do
desequilíbrio das contas públicas, com mesmas consequências de antes. Por
exemplo: o dólar caro, fonte adicional de inflação.
Sabem o que mais impressiona? A ampla
maioria a favor da PEC, incluindo as oposições variadas. Mais ainda: o
candidato favorito, Lula, diz que esse negócio de teto de gasto é uma furada,
coisa do mercado financeiro. Aliás, prometia acabar com o teto. Não precisa
mais. Bolsonaro e o Centrão já fizeram o serviço.
Assim, os dois principais candidatos e a
maioria do Congresso, que deverá ser reeleita, anunciam que se fartarão no
gasto público. Como cada setor do eleitorado acha que será especialmente
beneficiado com esse gasto, a farra fiscal está garantida.
As consequências também, de novo: inflação,
juros altos, baixo crescimento econômico.
Considerando que a Emenda Constitucional do
teto de gastos não pegou, a que outra legislação se poderia recorrer?
Biblia talvez?
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