Folha de S. Paulo
Emoção é a mesma da primeira posse, em 2003,
mas presidente eleito foi de líder a alvo
A emoção é a mesma da primeira vitória. A
recepção da rua é outra. Em 2003, Lula chegou
"sem medo de ser feliz". Levava sob o braço, como agora, a agenda
redistributiva. Cercou-se de vermelho, que coloriu o vestido da primeira-dama e
a sua gravata. Foi a cor do dia. Movimentos socialistas a carregavam nas
bandeiras, quando lotaram Brasília. Saudaram o presidente como um dos seus.
O eleito prometeu, então, incorporar no
governo os "anseios de mudança que se expressaram nas ruas".
Incorporou também ativistas, convertidos em tocadores de políticas, autarquias,
ministérios. Ocupados em governar, os movimentos desertaram o protesto.
Vácuo se preenche. Feixe de movimentos novos à esquerda cresceu no espaço aberto. O MTST é dessa leva, se destacou exigindo moradia nas cidades. Mas apareceram muitos outros, sobretudo em torno de costumes e de identidades, étnicas e de gênero. A rua deixou de ser homogênea. Ficou convidativa até para quem antes não costumava usá-la. Sendo o governo de esquerda, suas políticas (como a "bolsa esmola") e seus subsídios desconfortaram a direita e movimentos foram se organizando também por esse lado.
Tudo miudinho. Esquerda e direita falharam
em arrastar multidões para pressionar Lula 1 e 2. Prosperidade econômica
internacional e sucesso das políticas sociais ajudaram no sossego. Recuos (como
no aborto) também. E havia o apoio de partes da sociedade fincada no
agronegócio, nas igrejas
neopentecostais e no empresariado desenvolvimentista. Juntando
tudo, Lula saiu como entrou, nos braços do povo: 87% o aprovavam.
Mas perdeu a unanimidade da rua. Foi de
líder a alvo. Movimentos à esquerda avaliaram sua administração como um
reformismo acanhado. Já os que surgiram à direita enxergaram apenas corrupção, econômica
ou de costumes. Coube à sucessora encarar
essas oposições, simultâneas e em alto volume, em 2013.
Nos anos da presidenta, o campo à direita
desabrochou. Hábil em se autonomear patriota, chamou a si os símbolos nacionais
contra o vermelho "petralha". E assim ajuntou milhões em 2015.
Arrebatou da esquerda o epíteto de senhora da rua.
Não era uma "nova direita"
monolítica. Eram movimentos bem diferentes entre si, que convergiam em bem
pouco. Verde-amarelismo e antipetismo bastaram para uni-los no impeachment e na
eleição de Bolsonaro.
Mas o que a oposição uniu, o governo
separou. Uns nem entraram ou logo saltaram do barco governamental. Outros
permaneceram fiéis até o naufrágio nas urnas. Restam agora poucos no bote dos
inconformados. São o suprassumo autoritário.
Nem todos os remanescentes podem ser
chamados de "movimentos sociais". O termo designa manifestações
políticas no espaço público, com concentrações, marchas e assemelhados, que
apresentam reivindicações a um governo. Podem ser de esquerda como de direita.
Movimentos são típicos da democracia porque dependem do Estado de Direito para
existir.
As ações de rua desta semana em Brasília
escapam da definição porque são antidemocráticas. Não se trata de movimento
social, mas de guerrilha: reação política coletiva e violenta de manifestantes
que não reconhecem a legitimidade do governo.
Guerrilhas não reivindicam, atacam. Lula
chegará ao Planalto entre vivas de movimentos à esquerda e de vaias dos à
direita. A diferença desta terceira posse é que estará também sob a mira de
guerrilheiros.
*Professora de sociologia da USP e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento
Um comentário:
Excelente análise da autora! Parabéns a ela e ao blog que nos apresenta sua análise!
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