G20 traz mistura de celebração e resignação
O Globo
Ainda que declaração final tenha sido tímida,
é essencial haver espaço onde líderes globais possam dialogar
Quando foi criado, em 2008, o G20 — grupo que
reúne as 19 maiores economias do planeta, mais União Europeia e União Africana
— se revelou um fórum crucial para debelar a crise financeira sem precedentes
que abalava o mundo. Reunindo 85% do PIB global e 75% do comércio mundial, o
grupo tinha legitimidade para pôr em marcha decisões que teriam custo alto
demais para cada país individualmente, mas eram necessárias coletivamente.
Passada a crise aguda, porém, a diversidade de regimes políticos e interesses econômicos
passou a impor dificuldades crescentes às decisões de impacto do grupo. Nem na
pandemia o G20 teve papel de destaque. De lá para cá, cada reunião tem
produzido um misto de celebração quando se alcança algum consenso e resignação
com seu caráter necessariamente limitado e insatisfatório.
Não foi diferente no encontro realizado nesta semana no Rio de Janeiro. No entender do Itamaraty, o documento final foi um sucesso. Incorporou a ideia brasileira da aliança contra a fome e a pobreza, mencionou a necessidade de reforma na governança global, defendeu a taxação sobre grandes fortunas, reconheceu a gravidade da mudança do clima e a necessidade de elevar a participação das mulheres na economia e na vida pública. Certamente a deslumbrante paisagem carioca contribuiu para impressionar os chefes de Estado e suas delegações, e a cooperação da população local com os transtornos inerentes ao encontro resultaram num evento sem sobressaltos. Mas os efeitos práticos serão pequenos.
Enquanto se discutia a presença deste ou
daquele líder na fotografia oficial, os analistas geopolíticos e a imprensa
internacional estavam de olho em fatos mais relevantes. Primeiro, na maior
ausência. Donald Trump, presidente eleito dos Estados Unidos, ainda não tomou
posse. Portanto qualquer acordo firmado por Joe Biden nos dias finais de seu
mandato está em xeque diante do que acontecerá com a maior potência global a
partir de janeiro.
Segundo, na presença incômoda. O chanceler
russo Sergey Lavrov garantiu que a declaração final não mencionasse a Rússia ao
falar na invasão da Ucrânia. No mesmo dia, seu chefe Vladimir Putin baixou
normas mais permissivas para o uso de armas nucleares, os ucranianos obtiveram
autorização para usar mísseis americanos de longo alcance contra os russos — e
usaram. Quem esperava do G20 um clima de apaziguamento, capaz de conduzir a
negociações rumo ao fim da guerra, mais uma vez ficou frustrado.
Outra frustração foi a dificuldade brasileira
para se projetar como líder na pauta ambiental. Ela ocupou papel modesto na
declaração final, aquém do esperado para uma reunião realizada num país com as
pretensões do Brasil. Os diplomatas preferiram apostar no consenso mais fácil
em torno da fome e da pobreza, tema nada controverso, a enfrentar com
determinação a agenda espinhosa da transição energética, que já mobilizara
outras reuniões do G20. O trabalho brasileiro ficou para a Conferência do Clima
da ONU, a COP30, prevista para Belém no ano que vem.
Nada disso deve desmerecer o encontro. É
essencial a existência de um espaço onde os principais líderes globais possam
manter diálogo civilizado para resolver seus problemas, livres de amarras
burocráticas. Que os consensos sejam hoje mais difíceis e menos eficazes é
sinal de como o mundo se tornou mais desafiador.
Fraude de beneficiário que diz morar sozinho
desvirtua Bolsa Família
O Globo
Quantidade de ‘famílias unipessoais’ entre as
inscritas no programa continua acima da proporção real
Em entrevista
ao GLOBO, o ministro do Desenvolvimento Social, Wellington Dias, revelou que
seu ministério já cancelou 3,7 milhões de benefícios do Bolsa Família em
razão de suspeitas de desvios e excluiu 1 milhão de famílias por aumento na
renda. O combate às fraudes é uma boa notícia, mas há evidências de que ainda
há muito a corrigir no maior programa social do país, que quadruplicou de
tamanho desde a pandemia.
O governo passado mudou as regras do Bolsa
Família, rebatizado Auxílio Brasil, estipulando um benefício fixo que não
considerava o tamanho da família. Isso criou um estímulo para que, ao se
inscrever no programa, o candidato declarasse morar sozinho, sem parentes —
dessa forma, uma mesma família poderia somar mais benefícios e ganhar mais,
desvirtuando o objetivo do programa. As famílias de um só integrante — ou
“famílias unipessoais” — inscritas no Bolsa Família saltaram de 2,2 milhões no
fim de 2021 para 5,8 milhões um ano depois. No início do atual governo, as
regras foram alteradas para coibir os abusos, mesmo assim há indícios
abundantes de que as fraudes persistem.
De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra
de Domicílios (Pnad) do IBGE de 2022, a média de famílias unipessoais no Brasil
é 16%. O Censo realizado no mesmo ano constatou que 18,9% dos lares brasileiros
têm apenas um morador. Pois o próprio Ministério do Desenvolvimento Social
(MDS) afirma que, no mês passado, das 20,7 milhões de famílias que receberam o
Bolsa Família, 4,057 milhões eram unipessoais, ou 19,6%.
Não é o único sinal de alerta. Dos 5.570
municípios brasileiros, em 60,3% a proporção de assistidos pelo Bolsa Família
que dizem morar sem parentes é superior à constatada pelo Censo. Entre as 27
capitais, em 14 há mais famílias unipessoais recebendo o benefício do que as
registradas no recenseamento. Há cidades em que 40% dos beneficiários do
programa declaram morar sozinhos.
O pente-fino em andamento reduziu a proporção
de famílias unipessoais de 23,4%, em setembro de 2023, para 19,4%, um ano
depois. Em alguns casos, segundo Eliane Aquino, secretária nacional de Renda de
Cidadania do Ministério, é necessário fazer visitas aos domicílios para
conferir, daí a demora para corrigir todo o cadastro. O MDS prevê que
contribuirá com uma economia de R$ 2 bilhões para o ajuste fiscal, coibindo
fraudes no Bolsa Família e no Benefício de Prestação Continuada (BPC). É
preciso apressar os dois pentes-finos. Quanto mais perto das eleições, maiores
serão as dificuldades. Ao coibir as fraudes, o governo libera mais recursos
para atender as famílias de fato necessitadas.
Prisões abrem nova chance de esclarecer
preparação de golpe
Valor Econômico
O inquérito da PF mostra que os mentores das ações não estavam brincando em serviço e não hesitariam em fazer correr sangue para alcançar seus intentos
Planos de militares e de um policial para um
golpe de Estado, com a intenção do assassinato de Luiz Inácio Lula da Silva, de
Geraldo Alckmin e de Alexandre de Moraes, então presidente eleito,
vice-presidente eleito e presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE),
respectivamente, dão um tom de extrema gravidade ao dossiê dos inquéritos sobre
as tentativas de Jair Bolsonaro perpetuar-se no poder. A Polícia Federal (PF)
indicou antes a intenção de Bolsonaro e seu entorno militar de anular as
eleições, expressa em uma minuta do golpe encontrada com o então ministro da
Justiça, Anderson Torres - tão conhecida que “tinha na casa de todo mundo”,
segundo o presidente do PL, Valdemar Costa Neto. A delação do tenente-coronel
Mauro Cid mostrou a pressão sobre o comando do Exército para que aderisse ao
golpe. A descoberta da operação Punhal Verde e Amarelo vai além e apontou
indícios de que o general Braga Netto, ministro da Defesa e vice na chapa de
Bolsonaro em 2022, sediou reuniões onde se teria tramado o assassinato de Lula,
Alckmin e Moraes.
Além da minuta de execução de uma Garantia da
Lei e da Ordem (GLO), que daria aos militares o comando militar da capital
federal e de uma intervenção no TSE, as investigações avançaram até planos para
instalação de um Gabinete Institucional de Gestão de Crise, cujo coordenador
geral seria Braga Netto e chefe, o general Augusto Heleno, então ministro do
Gabinete de Segurança Institucional. Aos meios pseudoinstitucionais para
decretar o golpe, a PF teria desvendado a estrutura de poder de transição,
formada pelos mais íntimos colaboradores militares de Bolsonaro.
O operador mais ativo do golpe, além do
ajudante de ordens de Bolsonaro, Mauro Cid, que esteve praticamente em todas as
reuniões de preparação do continuísmo, é o general reformado Mário Fernandes,
sub-chefe da Secretaria-Geral da Presidência. O rastreamento da PF mostra que
Fernandes pressionou de todas as formas os generais do Alto-Comando do Exército
para que aderissem, e se exasperou porque cinco generais foram totalmente
contra a aventura.
Como ex-chefe dos “kids pretos”, Forças
Especiais do Exército, Fernandes esteve em reunião com subordinados na casa de
Braga Netto em 12 de novembro para preparar a execução da Punhal Verde e
Amarelo. Regozijou-se de que Bolsonaro havia enfim aceito “nosso
assessoramento” - se convencido a não aceitar o resultado das eleições e
manter-se no poder. Fernandes manteve ligação com os acampados em frente ao QG
do Exército, a quem reservava o papel de estopim de uma revolta que, pelo seu
ímpeto, levaria as Forças Armadas a ceder ao clamor popular e intervir a favor
do presidente derrotado nas urnas.
Os detalhes da operação Punhal Verde e
Amarelo foram detectados a partir de mensagens recuperadas do celular de Mauro
Cid, que, como delator, ao que parece omitiu parte essencial da execução do
golpe planejado. A trama é uma operação terrorista com todas as letras. Foram
delineados os passos para sua execução, as necessidades logísticas e bélicas
para os assassinatos, assim como alternativas caso os planos não saíssem como o
previsto. Lula, pela rotina de exames médicos, poderia ser envenenado ou então atingido
por “uso de químico/remédio que lhe cause um colapso orgânico”. Abatido Lula, a
“neutralização” de Alckmin “extinguiria a chapa vencedora”.
A parte mais comprometedora do relato da PF
diz respeito ao plano para matar Moraes, que deixou de ser conjectura para se
transformar em ação, felizmente abortada no dia 15 de dezembro. O grupo Copa
2022 teria monitorado o deslocamento cotidiano do ministro e feito avaliação da
capacidade de resposta bélica dos agentes de segurança do ministro. Concluiu
pela necessidade de portar metralhadoras, granadas e pistolas para emboscar
Moraes e tirar sua vida, ainda que isso acarretasse “danos colaterais passíveis
e aceitáveis”.
A prisão de um general da reserva, três
tenentes-coronéis do Exército e um membro da Polícia Federal que participava da
segurança de Lula abre novas possibilidades de esclarecimento da preparação do
golpe de Estado. O inquérito confirma que boa parte do núcleo militar do
governo Bolsonaro e assessores estariam comprometidos com a trama, e agora
descortina em princípio que parte dos golpistas não se intimidaria em ir até as
últimas consequências - a eliminação física dos eleitos.
Até a semana passada, a tentativa de golpe de
Bolsonaro parecia uma operação desconexa, amadora, mal-planejada, que não
deveria ser levada a sério. O inquérito da PF mostra que os mentores das ações
não estavam brincando em serviço e não hesitariam em fazer correr sangue para
alcançar seus intentos. Foram detidos pela cúpula das Forças Armadas, que não
apoiou a aventura e se manteve fiel à Constituição.
Bolsonaro tem certeza de que poderá
participar das eleições de 2026. Os novos indícios sugerem que ele pode estar
cada vez mais longe disso. Militares e civis envolvidos têm direito a um
julgamento isento e ao mais amplo direito de defesa legal. Se culpados, terão
de pagar um alto preço por tentar destruir a democracia brasileira.
Com emendas, Congresso dobra aposta em abuso
do poder
Folha de S. Paulo
Até consultoria do Senado constata que
projeto aprovado não moraliza minimamente a intervenção de parlamentares no
Orçamento
Em votações apressadas, o Congresso não
promoveu mais do que mudanças
cosméticas no rito das emendas
parlamentares ao Orçamento da União, de modo a dar uma aparente
resposta a ilegalidades
apontadas pelo Supremo Tribunal Federal e
objeto de entendimento entre os três Poderes. Quem o diz não são só
especialistas e entidades da sociedade civil.
Nota técnica
da própria Consultoria de Orçamentos do Senado conclui
que o projeto de lei complementar em tese destinado a dar transparência às
emendas, aprovado em
caráter definitivo na terça-feira (19), "não responde a
praticamente nenhuma das exigências colocadas pelas decisões cautelares do STF
e pelo acordo interinstitucional celebrado entre os Poderes".
Segundo o documento, de 14 providências
recomendadas, somente 3 são substancialmente atendidas pelo projeto; destas, 2
já constam de normas vigentes. As duas preocupações mais importantes, na
prática, foram ignoradas pelos parlamentares.
As assim chamadas emendas Pix —uma
esdrúxula modalidade pela qual um deputado ou senador determina a transferência
direta de recursos para um governo local, sem nem mesmo a assinatura de um
convênio— terão de vir acompanhadas da finalidade do gasto, mas não há
mecanismo de controle sobre a devida aplicação do dinheiro.
Já no caso das emendas coletivas
(apresentadas por comissões temáticas ou bancadas estaduais), continuam abertas
as brechas para que elas disfarcem interesses meramente individuais, sem que o
verdadeiro autor possa ser identificado.
Não foi objeto do estudo da consultoria,
ademais, o volume aberrante que atingiu a intervenção direta dos congressistas
brasileiros no Orçamento.
Os pesquisadores Hélio Tollini e Marcos Mendes,
colunista da Folha, constataram que ela não encontra paralelo em 11 países
da OCDE analisados, entre eles presidencialistas, como EUA, México e Chile, e
parlamentaristas, como Alemanha e Itália, além da França semipresidencialista.
Os números impressionam. Em valores
corrigidos, a execução de emendas parlamentares não passava de R$ 3,9 bilhões
em 2015. No ano passado, foram R$ 35,9 bilhões. Neste 2024, a cifra pode chegar
aos R$ 48,3 bilhões.
Nesse período, o Congresso aproveitou a
passagem de presidentes da República politicamente inábeis, como Dilma
Rousseff (PT) e Jair
Bolsonaro (PL), para se apossar de fatias crescentes do
dinheiro do contribuinte.
Esse processo seria mais defensável se
respeitasse princípios como impessoalidade e publicidade, ou se a destinação
das emendas seguisse critérios de prioridade de política pública. Em vez disso,
parlamentares alimentam
suas bases eleitorais com o propósito de se perpetuarem nos
respectivos postos.
Com o projeto farsesco recém-aprovado, apenas
dobram sua aposta no abuso de poder.
Salto de grandeza pelo clima parece mais
distante
Folha de S. Paulo
Somada à eleição de Trump, declaração do G20
sem sinalizar financiamento para mitigação esfria expectativas com a COP29
Não são animadoras as perspectivas de
resultado significativo na COP29,
o encontro de cúpula sobre mudança
climática que se realiza em Baku, no Azerbaijão.
Dois baques recentes podem descarrilar a negociação diplomática para mitigar
o aquecimento
global e seus impactos sobre a saúde do planeta e da população.
A reeleição de Donald Trump nos
EUA ameaça alijar das tratativas o maior emissor de gases do efeito estufa no
planeta depois da China.
O republicano prometeu desobrigar seu país do Acordo de
Paris (2015), cujas metas de redução deveriam tornar-se agora
mais ambiciosas.
Já a reunião do G20 no Rio
de Janeiro não trouxe a
aguardada sinalização de que haverá financiamento para a
transição energética e a adaptação aos eventos extremos. O recrudescimento da
disputa entre Rússia e EUA travada na
Ucrânia e o empenho político da Presidência brasileira por uma
aliança contra a fome e a pobreza, ademais, eclipsaram a questão do clima.
O tema ambiental até comparece no comunicado
final, mas a declaração do G20, que poderia deslanchar a COP29, apoia maior
ambição para uma nova meta global de financiamento
climático sem especificar metas ou caminhos concretos para
alcançá-la.
Em 2009, países ricos assumiram o compromisso
de destinar US$
100 bilhões anuais, até 2020, para nações em desenvolvimento. Tal
objetivo nunca foi alcançado, e sua ampliação está no epicentro dos impasses em
Baku.
O próprio G20 reconhece a "necessidade
urgente de aumentar rápida e substancialmente o financiamento climático,
passando de bilhões para trilhões". Como efetuar esse salto, contudo,
permanece uma incógnita.
Para efeito de comparação, estudo encabeçado
pelo economista britânico Nicholas
Stern prevê que o investimento global para mitigação e
adaptação exigiria a fabulosa cifra de US$ 6,3 trilhões a US$ 6,7 trilhões
anuais até 2030.
A negociação em Baku não tropeça só no
quantitativo. Um dos entraves se anuncia no emprego pelo G20 da expressão
"recursos provenientes de todas as fontes". Países
desenvolvidos pressionam
para que outras nações também contribuam, inclusive com o reforço de
investimentos privados.
Para coroar as dificuldades, nações petroleiras como a Arábia Saudita pressionam pela exclusão na COP29 de referências até à transição energética —em última análise, ao compromisso com o fim da queima de combustíveis fósseis. Será surpresa se em Baku houver progresso, não retrocesso, nesses pontos cruciais.
O suspiro do multilateralismo
O Estado de S. Paulo
Último encontro do G-20 antes da posse de
Trump, inimigo do multilateralismo, concerta medidas emergenciais contra a
fome, como queria Lula, mas tom genérico expõe falta de foco
Sob a esplêndida paisagem do Rio de Janeiro,
onde 55 chefes de Estado se reuniram para a cúpula do G-20, pairavam grossas
nuvens: duas guerras, a nova “guerra fria” entre China e EUA, a eleição de um
presidente americano hostil ao multilateralismo. Nessas condições, qualquer
cúpula, fosse onde fosse, presidida por quem fosse, dificilmente seria um
sucesso. Que o Brasil tenha evitado que fosse um fracasso, pode ser contado
como uma conquista.
Comece-se pelo fato nada óbvio de que os
países concertaram uma declaração final bastante abrangente. Mas esse documento
inflado de intenções genéricas e promessas piedosas tem um quê de exasperação,
que expõe a crise de instituições multilaterais como o G-20.
A aliança foi gestada como um grupo de
cooperação econômica após a crise financeira asiática de 1999 e veio à luz em
2008 para evitar – como evitou – que o sistema financeiro global fosse
precipitado numa queda livre. O comunicado de 2009 continha 3 mil palavras
focadas na estabilização do sistema financeiro e no resgate da economia
mundial; o atual, mais de 10 mil sobre um pouco de tudo: de guerras e ações
climáticas a reformas da governança global e inteligência artificial.
Desde 2008, acumularam-se desafios globais –
como a saúde do planeta ou a pandemia –, que, por definição, exigem cooperação
internacional. Mas o paradoxo é que na mesma proporção em que o G-20 crescia em
tamanho e visibilidade, perdia em foco e efetividade. As crescentes divisões
entre países contribuem para essa inoperância. Mas essas divisões, longe de
deslegitimar o G-20, o justificam. A questão não é se o mundo precisa ou não de
um G-20, mas como utilizá-lo de maneira eficaz.
Na cúpula anterior houve frustração em
relação à dificuldade de ir além de declarações anódinas sobre desafios graves,
como as guerras, mas talvez essas dificuldades sejam um alerta de que o grupo
deveria voltar às origens, deixar divergências geopolíticas para instâncias
como a ONU e se concentrar nas questões econômicas, com planos de ação
concretos, objetivos mensuráveis e responsabilização pelos resultados.
O Brasil deu sua contribuição. A Aliança
Global Contra a Fome, idealizada pelo governo Lula e integrada por dezenas de
países e organizações internacionais, propõe uma cesta de políticas
assistenciais. O BID se comprometeu com US$ 25 bilhões para apoiá-las. São
recursos limitados, que não chegam a ser exatamente novos: o BID já os
empregaria para iniciativas como essas. De todo modo, há a oportunidade de
estruturá-los sobre um arcabouço comum. Ainda será preciso deliberar a parte
difícil: quem financiará o resto, quais serão as quantias e quais as condições
de governança dos beneficiados. Tudo está em estágio embrionário, e não será
surpresa se essa iniciativa morrer de inanição, como tantas outras. Mas ao
menos os países do G-20 têm uma plataforma concreta para enfrentar um problema
consensual.
O próprio Lula, no entanto, dá um exemplo de
dissonância entre as expectativas e a realidade no G-20. Em seu discurso, disse
que a “globalização neoliberal fracassou”, como se os anos de integração
comercial pós-guerra fria não tivessem promovido a mais espetacular redução da
pobreza da história. O desenvolvimento sustentável depende de regras
internacionais estáveis e boa governança doméstica para garantir
competitividade e produtividade no mercado e alocação eficaz de recursos
públicos. Países que atingiram padrões razoáveis nesses quesitos, como as
democracias que integram a OCDE, têm os melhores índices de produção e
distribuição de riqueza. Mas Lula fez questão de não convidar a OCDE para a
cúpula nem se empenhou em qualquer discussão sobre questões estruturais.
Medidas assistencialistas podem ter seu papel
para mitigar crises emergenciais – como o aumento da fome após a pandemia –,
mas são só paliativos, não uma solução para erradicar a pobreza. A solução está
na produtividade econômica e instituições políticas inclusivas. Mas, sobre
isso, o presidente brasileiro faz muito pouco no Brasil e tem muito pouco a
dizer ao mundo.
Combate ao crime caro e ineficaz
O Estado de S. Paulo
Países latino-americanos gastam muito com
segurança, mas níveis de violência na região, sobretudo número de homicídios,
deixam claro que tais investimentos não têm sido bem-sucedidos
Duas importantes instituições multilaterais,
o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e o Fundo Monetário
Internacional (FMI), divulgaram recentemente relatórios sobre o impacto
econômico do crime nos países latino-americanos. De acordo com a publicação Os
custos do crime e da violência: Ampliação e atualização de estimativas para a
América Latina e o Caribe, do BID, o custo direto dos delitos respondeu por
3,44% do PIB da região em 2022, ou 12 vezes mais que o orçamento para pesquisa
e desenvolvimento. E a região, apesar de concentrar apenas 8% da população
mundial, representa um terço dos homicídios cometidos no mundo, segundo o
relatório Crime Violento e Insegurança na América Latina e Caribe, do FMI.
Ao estimar a fatia do PIB regional
relacionada ao crime, o BID considerou fatores como perda de capital humano por
homicídios, gastos de empresas com segurança e o gasto público com a prevenção
de delitos, entre outros. De um modo geral, os dados são agregados para a
região como um todo, mas, nas poucas vezes em que há dados específicos por
país, a tragédia brasileira aparece escancarada.
Ao lado de Bahamas, Honduras, Jamaica e
Trinidad e Tobago, o Brasil figura entre os países com maior custo de capital
humano em 2022; as perdas de capital humano por homicídios em nosso país
equivaleram a 1% do PIB naquele ano. Não é exatamente surpreendente, já que o
Brasil é um dos países com taxas de homicídios entre as mais elevadas do mundo,
mortes essas que, na maioria das vezes, acabam sem esclarecimento. Como revelou
um levantamento do Instituto Sou da Paz, apenas quatro de cada dez homicídios no
País são solucionados, uma taxa de resolução inferior à média mundial.
O presidente do BID, Ilan Goldfajn, destacou
que o estudo mostra o quanto o crime “limita o crescimento, leva à desigualdade
e desvia investimentos públicos e privados” para outras áreas. Se não tivessem
de gastar tanto no combate à violência e à criminalidade – o dobro do orçamento
com assistência social –, os países da região poderiam investir mais em
educação, cada vez mais necessária em uma era de grandes transformações
tecnológicas. Mas o pior é que os elevados níveis de violência na região deixam
claro que tais investimentos não têm sido bem-sucedidos.
Países que convivem com a alta da inflação,
com o Brasil, também precisam redobrar os esforços para debelá-la, não apenas
porque o avanço dos preços corrói o poder de compra dos cidadãos, mas porque,
segundo o FMI, quando a inflação supera os 10% em um ano, há um crescimento de
10% nas taxas de homicídios, em média, no ano seguinte. Eventos macroeconômicos
adversos, como recessões, elevam os índices de homicídios em 6%, em média.
Todos esses números deveriam guiar a
elaboração de políticas públicas efetivas, que passam ainda pela necessidade de
cooperação mais estreita entre os governos dos países da região – cooperação
esta que já existe entre as organizações criminosas latino-americanas.
Nos últimos anos, esses grupos passaram a
racionalizar suas operações, atuando de forma cada vez mais “profissional”.
Antes concorrentes, organizações criminosas agora são parceiras. Algumas
fornecem as mercadorias, de drogas a minérios e madeira extraídos de forma
ilegal da Amazônia, enquanto outras se encarregam da logística, fazendo com que
as “encomendas” cheguem aos destinatários na Europa e nos Estados Unidos.
Sem cooperação efetiva dos departamentos de
segurança dos países da região, troca de informações e reforço da vigilância em
áreas fronteiriças, entre outras ações, o crime seguirá prosperando, enquanto
os governos patinam e a população perece.
No estágio atual, a prevalência do crime na
América Latina faz com que habitantes de regiões dominadas pela criminalidade
ou mudem-se para áreas mais seguras, mesmo que isso signifique perda de renda,
ou tornem-se presas fáceis das organizações criminosas. Em ambos os casos,
perde-se capital humano, o que diz muito sobre o ciclo de desenvolvimento
incompleto da região.
Liberdade para a gestão pública
O Estado de S. Paulo
Após décadas de procrastinação do Judiciário,
servidores poderão ser contratados pelo regime CLT
A reforma administrativa é uma questão de
cidadania. Como já dissemos neste espaço, as arbitrariedades e
disfuncionalidades da administração pública a tornam uma máquina de gerar
desigualdades, pobreza, injustiça social e conflito civil.
Desigualdade, porque em média os
trabalhadores do setor público ganham acima de seus pares na iniciativa privada
e a disparidade entre as carreiras do topo e da base é maior que no setor
privado. Pobreza, porque uma máquina custosa e ineficiente pressiona as contas
públicas, contraindo os investimentos estatais e afugentando os privados.
Injustiça social, porque os mais pobres sofrem mais com a carência de serviços
básicos. E conflito, porque estas distorções e perversões incitam a descrença
do cidadão em relação ao Estado Democrático de Direito e desencadeiam um ciclo
vicioso de vilanização dos servidores públicos retroalimentada por sua
vitimização.
Um dos vícios de origem mais deletérios desse
sistema é o Regime Jurídico Único estabelecido pela Constituição, que impõe,
tanto à administração direta quanto indireta, um formato uniforme, rígido e
centralista de contratação de funcionários, independentemente da função.
Qualquer democracia prevê, por exemplo,
estabilidade de carreira para garantir a continuidade dos serviços e a proteção
de políticas de Estado e dos servidores contra pressões dos governos de turno.
Mas em geral a estabilidade é restrita a carreiras típicas de Estado, como
juízes, diplomatas, policiais e fiscais. No resto, há diferentes categorias de
servidores e regimes, garantindo à gestão pública flexibilidade para se adaptar
a uma realidade em constante transformação. O modelo brasileiro é uma aberração
sem paralelo no mundo.
Para corrigi-la, o Congresso aprovou uma
Emenda à Constituição permitindo a contratação de parte dos servidores pelo
regime da CLT. Isso foi no século passado, em 1998. E, no entanto, só agora a
norma passará a valer.
Isso porque em 2000, os suspeitos de sempre –
PT, PDT e outras legendas de esquerda – entraram com uma ação na Suprema Corte,
que, em 2007, suspendeu liminarmente os efeitos da emenda. O julgamento foi
iniciado apenas em 2020 e concluído somente agora, pasme o leitor.
O mais estupefaciente é que nem sequer se
tratava de questão de mérito. Os autores da ação alegavam inconstitucionalidade
na alteração de um dispositivo que não havia sido aprovado em votação de dois
turnos. Mas, como entendeu o voto vencedor na Corte, tratava-se apenas de uma
mudança de local no texto, que não justificaria nova votação.
Se uma questiúncula procedimental, que
poderia ter sido apreciada em poucos dias, só o foi após 24 anos, não é,
evidentemente, em razão de intrincadas divergências doutrinais, mas por pressão
de lobbies corporativistas. Na prática, o Judiciário protelou por 26 anos a
entrada em vigor de uma norma perfeitamente legítima aprovada pelo Legislativo,
com prejuízos incalculáveis para os cidadãos.
Toda essa miserável e dispensável saga é ela
mesma um exemplo da disfuncionalidade, ineficiência e onerosidade da máquina
estatal e serve de alerta à urgência de reformas.
Brasileiros admitem que a sociedade é racista
Correio Braziliense
Agravar as punições aos racistas pode ser um
caminho para inibir esse tipo de crime. Mas a solução para modificar a relação
entre negros e brancos, ou com quaisquer outras etnias, passa pela educação em
todos os seus níveis, tanto nas escolas quanto na família
Para 59% dos brasileiros, a maioria da
população do Brasil é racista. Na opinião de 45%, o crime de racismo —
inafiançável e imprescritível — vem aumentando, e no entendimento de 56%, ele é
cometido por meio das atitudes das pessoas. Essa é uma compreensão tanto de
brancos (55%) quanto dos pretos (64%) e dos pardos (60%). Os dados são da
pesquisa do DataFolha, com 2.004 pessoas em todos os estados do país, e foram
divulgados neste 20 de novembro, na primeira vez em que o Dia de Zumbi e da
Consciência Negra foi feriado nacional.
Ainda conforme a pesquisa, 74% das mulheres
acham que a maioria ou todos os brasileiros são racistas. No entendimento de
27% dos consultados, o racismo está nas estruturas institucionais (governos e
empresas). Para 13%, essa violência ocorre pela ação das pessoas e também nas
instituições, sejam públicas, sejam privadas.
A percepção dos brasileiros entrevistados soa
estranha ante uma população em que 56,7% (mais de 122 milhões) dos indivíduos
são negros, conforme a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua
(Pnad Contínua) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no
segundo trimestre deste ano. Mas os consultados pelo DataFolha têm uma visão
correta da realidade do povo negro. O Anuário Brasileiro de Segurança Pública,
lançado em julho último, revelou que as denúncias de racismo, registradas em 2023,
aumentaram 123% na comparação com o ano anterior — 11.616 ocorrências contra
5.100 em 2022.
Neste cenário de atraso e violência, o Rio
Grande do Sul foi o estado com o maior número de ocorrências no ano passado:
2.857 casos. Embora o estado tenha uma hegemonia branca, foram os jovens negros
gaúchos, do Grupo Palmares, que lançaram, 53 anos atrás (1971), o Dia da
Consciência Negra. A proposta dos jovens conquistou o restante do país, até que
a data se tornou oficial por meio da Lei nº 10.639/2003, e incorporou como
obrigatório o ensino da história e da cultura afro-brasileira nas e escolas.
Expressiva parcela do povo negro é movida
pela coragem e pela resiliência de Zumbi dos Palmares. O racismo dominante, que
envergonha o Brasil, não é uma barreira intransponível. A luta incansável de
pretos e pardos tem alcançado várias conquistas. Uma delas é a cota racial para
acesso ao ensino superior. A Lei nº 12.711 estabeleceu que 50% das vagas fossem
reservadas para alunos do ensino médio das escolas públicas.
Essa vitória beneficiou não só pretos e
pardos, mas também indígenas, quilombolas e pessoas com deficiência. Em 2014,
as cotas raciais foram inseridas nas regras dos concursos públicos. A mudança
tornou-se exemplar para vários segmentos do setor produtivo. Empresas passaram
a contratar pessoas negras. Ainda que o preconceito hediondo persista, vários
setores estão entendendo que o Brasil é um país etnicamente plural e com enorme
diversidade cultural.
Agravar as punições aos racistas pode ser um caminho para inibir esse tipo de crime. Mas a solução para modificar a relação entre negros e brancos, ou com quaisquer outras etnias, passa pela educação em todos os seus níveis, tanto nas escolas quanto na família. As políticas de Estado têm de ser mais vigorosas e educativas para que a cor da pele não seja motivadora de violência ou de injustiças pelo poder público.
Um comentário:
" Esse negócio de gópi é tudo narrativas. "
😏😏😏
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