Valor Econômico
Situação fiscal da União Europeia está muito longe de cumprir os objetivos do Tratado de Maastrich
Pouco destaque teve por aqui uma notícia
importante sobre a União Europeia. Na quarta-feira, a presidente da Comissão
Europeia, Ursula von der Leven, foi a Madri e Lisboa para anunciar a aprovação
dos planos de recuperação econômica de Espanha e Portugal, que receberão,
respectivamente € 70 bilhões e € 16 bilhões. Na quinta-feira e na sexta-feira,
Ursula visitou Dinamarca, Luxemburgo e Grécia com o mesmo objetivo.
A notícia não é importante apenas pelos
valores bilionários a ser liberados para investimentos pós-pandemia em países
membros - o plano, chamado “Next Generation EU”, distribuirá € 750 bilhões (R$
4,5 trilhões), a maior parte sob a forma de subvenções, ou seja, transferências
a fundo perdido. É importante também porque a iniciativa pode indicar o início
de uma mudança histórica. Em crises anteriores, sob o comando da ortodoxia
alemã, a UE agiu com mão de ferro e fiscalismo radical contra membros mais
pobres. Exigiu austeridade e impôs uma política macroeconômica que agravou
problemas sociais desses países e travou seu crescimento econômico.
Um primoroso trabalho acadêmico feito por
dois economistas espanhóis, catedráticos da Universidade do País Basco, Jesús
Ferreiro e Carmen Gómez, mostra o impacto negativo dessa ortodoxia econômica em
toda a zona do euro. Ferreiro apresentou o trabalho no dia 12 durante o SDMRG
International Workshop.
O “paper” é amplo e técnico, denominado “Fiscal policy and long-term economic growth: lessons from the Euro Area”. Chama a atenção um gráfico que compara os crescimentos econômicos na zona do euro com os dos demais blocos de países avançados ou emergentes.
Os números principais estão no gráfico ao
lado. Em 28 anos, de 1991 a 2019, a expansão acumulada do Produto Interno Bruto
(PIB) dos países da zona do euro foi de apenas 53,5%, muito abaixo da média
alcançada pelas demais economias avançadas, de 167,8%, e a uma distância
infinita em relação aos 667% dos emergentes asiáticos.
O vexame europeu é observado também nos 20
anos desde a criação da moeda única, o euro. De 1999 a 2019, o crescimento
acumulado do PIB foi de 30,7%, enquanto as demais economias avançadas cresciam
89,1%, e emergentes asiáticos, 330%.
Em bom português, quer dizer que as nações
da zona do euro, em seu conjunto, empobreceram em relação aos demais países. Só
foram melhores que o já suficientemente rico Japão, cujo PIB cresceu apenas 26%
de 1991 a 2919 e 15% de 1999 a 2019.
Para mostrar os efeitos da política
macroeconômica ortodoxa, Ferreiro lembra a lógica subjacente no processo de
integração europeia e da construção da união monetária. Assinada em 1986, Ata
Única Europeia definiu a plena integração econômica e a formação de um mercado
único até 1992. Entendia-se que o mercado único, com estabilidade cambial e
austeridade fiscal, promoveria a aceleração do crescimento em todo o bloco.
Haveria maiores fluxos comerciais, mais competitividade e isso resolveria o
problema crônico europeu, já chamado naquela época de “neuroesclerose”.
A União Europeia foi oficialmente criada em
1992, pelo Tratado de Maastricht. Adotou-se política monetária única, por meio
do Banco Central Europeu (BCE), que fixou a meta de inflação em 2% ao ano. Não
se estabeleceu uma política fiscal única, mas foram criadas regras fiscais
rígidas, como déficits públicos de até 3% do PIB e dívidas públicas não
superiores a 60% do PIB, com punições para países que não as cumprissem. Além
disso, Maastricht proibiu o financiamento monetário de desequilíbrios fiscais e
o resgate de um país por outros Estados ou por instituições comunitárias. Para
eliminar a instabilidade cambial, estabeleceu-se a moeda única. O euro passou
substituir as moedas nacionais a partir de 1999 - hoje engloba 19 países.
O Pacto de Estabilidade e Crescimento, de
1997, tornou as normas fiscais ainda mais restritivas. Essa política foi amainada
na crise financeira, de 2007 a 2009, mas retomada a partir de 2010, o que levou
a economia europeia à recessão.
Ferreiro e Gómez mostram que não tem havido
coordenação das políticas monetária e fiscal na zona do euro. Em certos
momentos, quando a política fiscal passou a ser expansiva, o BCE adotou
políticas monetárias restritivas. A estratégia regional macroeconômica está
definida, desde 2011, por uma política monetária expansiva e uma política
fiscal restritiva.
Com a continuidade da secular estagnação
europeia, permaneceram depois da criação da UE os principais desequilíbrios
macroeconômicos da região. O desemprego não foi reduzido em três décadas,
exceto na Alemanha. A combinação de políticas de austeridade fiscal com
reformas trabalhistas produziu forte aumento de desigualdade e pobreza. Em
2019, 20,6% das populações da zona do euro estavam em risco de pobreza e
exclusão social. Ao contrário do que previa a política restritiva, os
desequilíbrios fiscais não foram corrigidos, e a dívida pública do bloco
aumentou para 85% do PIB. A situação fiscal da região está muito longe de
cumprir os objetivos do Tratado de Maastricht.
Voltando ao início da coluna, cabe a pergunta: será que, de fato, a aprovação dos planos de recuperação econômica pós-pandemia, com injeção de € 750 bilhões, representa uma mudança histórica no bloco? Ferreiro é cético: “Embora a reforma das regras fiscais seja necessária, não está clara a vontade política para mudar radicalmente essas normas. Podemos considerar essa situação transitória e excepcional”.
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