Estamos assistindo a um momento crucial do julgamento, pelo STF, das evidências explicitas de um golpismo de palavras e atos que grassou na atmosfera política brasileira como uma marca do período de governo de Jair Bolsonaro. Esse golpismo, por vezes latente, mas já bastante explícito na trajetória pregressa e no discurso eleitoral do candidato vencedor das eleições de 2018, escancarou-se durante a pandemia, mas tão logo cessou aquele momento social crítico, encorpou-se num sentido diretamente político, de um politicídio. Desdobrou-se em seguidas tentativas de fricção institucional, que alcançaram seu ponto máximo nos estertores do governo Bolsonaro, meses antes e até quase dois meses após as eleições de 2022, quando o presidente saiu do país, recusando-se a passar a faixa ao adversário eleito.
A derrota da pretensão de reeleição do então
presidente provocou, imediatamente, uma justa e razoável sensação de alivio das
tensões políticas e dos temores de amplos segmentos sociais. Percebeu-se uma rápida
injeção de oxigênio num ambiente em que se vinha respirando um ar extremamente
rarefeito. Ainda que o adversário vencedor fosse uma personalidade política
controversa - que nem de longe podia mais ostentar o amplo consenso social
existente em torno de sua figura política até uma década antes - e ainda que
sua vitória tenha se dado por muito estreita margem de votos, até por causa
disso a sensação de alivio disseminou-se, dada a noção precisa do perigo que foi
afastado nas urnas. As instituições políticas saíram mais fortalecidas daquele
processo eleitoral e um clima de expectativa e razoável colaboração recepcionou
os primeiros passos do presidente eleito na composição política do Poder
Executivo e na retomada de um diálogo fluente desse com os demais Poderes. As
sombras no horizonte eram muitas a mitigar o otimismo, mas diziam respeito mais
ao estado de coisas legado pelo antecessor, do que a algum juízo negativo prévio
sobre a capacidade do sucessor enfrentar os desafios.
O que o novo/antigo presidente Lula e seu
governo fizeram das suas favoráveis condições iniciais não é o foco deste
artigo. Será uma variável de fundo, a ser comentada pontualmente, no decorrer
da análise. O foco aqui é a fluente conexão entre aquele forte alivio
discretamente esperançoso oferecido pelas urnas de 2022 e o momento crucial a
que chega agora o julgamento do STF, sugerindo evocar o alívio.
No momento específico atual, os principais responsáveis
pelo que se viveu no Brasil durante o período bolsonarista (com destaque para o
capitão da aventura golpista) aparecem no banco dos réus perante o país que, até
pouco mais de dois anos atrás, eles punham em desassossego. A relevância
histórica e o caráter simbólico do ineditismo desse acontecimento vêm sendo
frisados por muitos analistas, sendo-o, com grande agudeza e felicidade, num
artigo de Tiberio Canuto (Viva a Democracia! Revista Será? https://bit.ly/45iq9m1) que compara
analiticamente, inclusive com uma dimensão testemunhal, o que ocorre agora com os
julgamentos, pelo regime militar, de adversários políticos previamente presos.
Os réus da acusação de golpe de Estado estão sendo
postos diante de fatos concretos, arrolados por investigação idônea e acompanhados
de fartas evidências de uma trama golpista. Sendo muitas dessas evidências
comprovadas ou comprováveis, elas pressionam os réus a apresentarem uma
contraversão minimamente crível, o que, apesar do respeito ao amplo direito de
defesa, até aqui não ocorreu e há pouca chance de ocorrer. No máximo, eles
esboçam narrativas que podem, talvez, sustentar, em alguma medida, a
continuidade da ação de adeptos seus no mundo da política, que hoje estão,
quando não isolados, obrigados a dissimular seus propósitos, antes escancarados,
ou mesmo a rever objetivos, para amoldarem-se a uma direita que se robustece
mais na normalidade, do que na excepcionalidade que o governo anterior
obstinadamente tentou provocar. Sendo mais preciso sobre a pressão
normalizadora sofrida por políticos bolsonaristas, digo que ela deriva de
condições novas, por sua vez ligadas ao protagonismo político do Congresso e à relevância
que eleições legislativas adquiriram ultimamente.
Essas mudanças institucionais na dinâmica
política do país não padecem de artificialismo malévolo e degenerativo, ditado
pelo reacionarismo e /ou pelo interesse predatório da corporação parlamentar. É
inegável que essas dimensões até politicamente espúrias existem e atuam, mas é
equívoco de visão não enxergar elos recíprocos entre a busca de normalização do
pragmatismo parlamentar e o cansaço e perda de eficácia eleitoral do discurso e
do gestual da hiperpolarização. Uma inclinação detectável não só nas eleições
legislativas de 2022 e nas municipais de 2024, como em sondagem recente que
aponta mais de 60% dos eleitores desejosos de não verem nem Lula nem Bolsonaro
na disputa presidencial, que é, aliás, o território privilegiado da lógica
plebiscitária. Se o apelo à polarização binária começa a ter problemas em seu
próprio terreno, há motivo bastante para encararmos com olhar menos óbvio a
atitude conciliatória de “raposas” da política. Além do autointeresse, há, nessa
atitude, radares sensíveis.
Por outro lado, a narrativa de vitimização até
aqui esboçada, em redes sociais, pela defesa dos réus do processo do STF (à
diferença de sua defesa jurídica, que parece mais apelar para um certo
realismo) pode, talvez, encontrar mais abrigo em sentimentos sociais do que no
mundo racional utilitário da política. Isso pela resiliência de percepções e
afetos legados pela polarização extrema que se estendeu do contexto das eleições
de 2014 e do impeachment de 2015/16, até o final do governo Bolsonaro. E
também por alimentação daquele duelo, ainda hoje, por certos atores políticos
de ambos os lados, que tensionam e problematizam a via do entendimento político.
A retroalimentação da polarização extrema tem resistido a condições vigentes no
mundo atual da política, que indicam a conveniência de superá-la.
Mas é bom não desprezar, nem subestimar, a
manutenção da resiliência social, aquilo que vários analistas passaram a chamar
de polarização afetiva. Um sentimento residual forte, que pode se comparar, por
paradoxo, ao que o economista e cientista social Vilfredo Pareto chamou “persistência
de agregados”, barreira robusta, interagente com o instinto de “combinações em
geral” que, grosso modo e livremente, pode-se associar a impulsos progressistas
e reformadores, também presentes na sociedade. São sentimentos ligados à segunda
ordem de impulsos que a demora da polarização exaustiva contraria.
Quem nutre alguma esperança de mudança em
direção a uma atualização política, a uma impulsão econômica com preservação
ambiental e a uma maior coesão do tecido social ainda paradoxalmente esgarçado,
festeja o rumo do atual capítulo do julgamento de Bolsonaro e seus militares
implicados naquela tentativa de golpe de Estado, ao final de 2022, contra as
eleições e seus resultados. Nos últimos dias ficaram em segundo plano versões
controversas acerca de acontecimentos anteriores ou posteriores àquele ataque de
nomes, sobrenomes e patentes de destaque, às instituições. Inclusive o ocorrido
no dia 8 de janeiro de 2023, que antes vinha ocupando espaços generosos não só
nas redes sociais, mas também no noticiário e em discursos políticos, a ponto
mesmo de provocar uma contenda legislativa em torno de uma virtual anistia. Um
dominó com alto potencial diversionista e desagregador.
Sabe-se que o enquadramento judicial dado à
questão, até aqui, pelo Ministério Público e o próprio STF, é o de ver as ações
de Bolsonaro e seus militares como parte de uma conspiração contínua que teria
prosseguido até o 8 de janeiro quando, após a posse dos eleitos, já eram outras
a temperatura política do país, como também as suas autoridades, Temos sob
nossos olhos a ocasião de comparar a capacidade de comprovação e persuasão de
tal tese com a que se dá diante da exposição cristalina dos movimentos dos réus
do atual capítulo do processo judicial. A comparação sugere, no mínimo, uma
inflexão de foco.
Mais de uma vez, nesta coluna, assinalei o
que me parece um equívoco, qual seja, confundir a denúncia, plena de evidências,
de uma tentativa de golpe de estado, perpetrada por agentes públicos
objetivamente identificados e nomeados, agindo quando estavam no pleno manejo
do poder desse mesmo estado; e aquilo que parece mais ter sido, no 8 de
janeiro, o desespero de parte não tão precisamente demarcada dos atores derrotados
insuflando e financiando atos incivis de uma aglomeração de pessoas de mentalidade
certamente autocrática e golpista, disposta a ir além das ações pacificas para
praticarem um esperneio expressivo da sua frustração. Pessoas, porém,
desprovidas de meios para fazer um desejo de golpe tornar-se, de fato, uma
intenção em ato. Confundir as duas coisas, além de aumentar as possibilidades
de se cometer injustiças em nome da Justiça, rebaixa o significado do
julgamento dos mentores de uma tentativa concreta de golpe, para quem nenhuma
proposta de anistia poderia sequer nascer, quanto mais vingar. Só foi possível
conjecturar anistia porque foram quase nivelados, na narrativa pública, a pessoas
comuns, tendentes ao anonimato político, ainda que possam e devam responder a
processos judiciais. Mas esses processos, pedagógicos para a consolidação de
uma cultura democrática, poderiam transcorrer com paciência e parcimônia
máximas da Justiça e do Direito, sem o caráter politicamente crucial, para a república
e o regime democrático, que é intrínseco ao julgamento reto, em tempo hábil, de
chefes autocráticos pilhados em crime contra o Estado Democrático de Direito.
São esses alhos que merecem ser servidos à sociedade, separados dos bugalhos.
Em coluna na Folha de São Paulo, a
jornalista Mônica Bérgamo comenta que dirigentes do PT estariam preocupados com
a “velocidade” imprimida pelo ministro Alexandre de Moraes ao julgamento de
Bolsonaro (Mônica Bérgamo: Prato quente – FSP/Ilustrada, em 12.06.25). O
receio seria a liderança do ex-presidente sobre o conjunto da direita e sua
força para controlar o preparo do cardápio eleitoral cessarem antes de um momento
mais conveniente à reeleição do presidente Lula. Esse momento ideal seria,
conforme análises de dirigentes petistas, meados de 2026. Acreditam que, se
mantido, até lá, certo grau de incerteza sobre o futuro de Bolsonaro, a direita
ficaria mais limitada na fixação de sua estratégia eleitoral. O espectro de um Bolsonaro
muito influente teria efeito inibidor de alternativas unitárias de candidaturas
e chapas da direita capazes de desafiar o presidente. Mais ou menos como
ocorreu, há 8 anos, quando Lula, mesmo preso, manteve a esquerda presa com ele,
sob o bordão do “Lula livre”, até praticamente vésperas da eleição de 2018. Um
compromisso moral com o líder emprestou legitimidade a um cálculo e a um
discurso políticos. Isso ajudou muito, como sabemos, a desgastar e imobilizar o
governo Temer, mas beneficiou o adversário radical, que prosperou à sombra da
polarização extrema.
Tal cenário, caso se repetisse, com sinais
trocados, em 2025/2026, decerto daria tempo a Lula (cuja popularidade declina,
mas não se compara à impopularidade de Temer às vésperas de 2018) de tentar arrumar
a casa desarrumada do seu governo e perfilar aliados em torno da sua reeleição,
hipótese que também as regras negavam a Temer, em 2018. A aposta seria ainda
mais feliz se Bolsonaro apontasse o dedaço para a candidatura da esposa, ou
outra solução doméstica e/ou ideológica da extrema-direita. No mínimo – seguem
as conjecturas desejosas - isso fraturaria a direita. Porém, o máximo do desejável
para o PT seria esse nome identitário do bolsonarismo e da extrema-direita
chegar ao segundo turno. Afinal, todas as sondagens de opinião feitas até aqui
apontam o intuitivo, isto é, menos dificuldade para Lula, ao fim e ao cabo,
bater uma candidatura adversária com perfil extremista do que a do governador
de São Paulo ou outro dos nomes mais moderados de direita que têm posto o rosto
em cena até agora.
Se o comentário da jornalista estiver amparado
em informação correta – e essa hipótese é forte, diante do seu reconhecido
trânsito no mundo político brasileiro e junto ao campo da esquerda, em
particular – registra-se um descompasso entre os sentidos da análise de tais dirigentes
petistas e o da que alinhavei, neste artigo, sobre a importância, para as
instituições republicanas e o regime democrático, do atual estágio do
julgamento do STF. Neste último caso, os focos são a institucionalidade, a
estabilidade política e a sustentabilidade da democracia. No primeiro caso, o foco é a estratégia para
a competição eleitoral.
Estou distante de quem vê na competição
eleitoral um terreno “menor”, no sentido de menos nobre do que o da política de
um bem comum fundado em improvável virtude prévia de determinados atores
políticos. Se não houvesse, na sociedade, pluralidade de valores, crenças e
interesses dignos de consideração, ela dispensaria o pluralismo político. Mas
sendo a pluralidade social um fato independente de vontade política, o realismo
pluralista é vital. Obriga grupos e lideranças políticas a moderarem a vontade
de poder e preservarem fins compartilhados, sem o que a disputa vira guerra e,
como em toda guerra, o próprio poder político naufraga. É boa hipótese o
feitiço vitimar o feiticeiro, como está sendo visto no julgamento de Jair
Bolsonaro. Nesse sentido, o processo judicial, se separar alhos de bugalhos,
pode estimular uma retomada, ao menos, do alívio discretamente esperançoso.
*Cientista político e professor da UFBA
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