domingo, 15 de junho de 2025

Um julgamento que pode estimular nova retomada política - Paulo Fábio Dantas Neto*

Estamos assistindo a um momento crucial do julgamento, pelo STF, das evidências explicitas de um golpismo de palavras e atos que grassou na atmosfera política brasileira como uma marca do período de governo de Jair Bolsonaro. Esse golpismo, por vezes latente, mas já bastante explícito na trajetória pregressa e no discurso eleitoral do candidato vencedor das eleições de 2018, escancarou-se durante a pandemia, mas tão logo cessou aquele momento social crítico, encorpou-se num sentido diretamente político, de um politicídio. Desdobrou-se em seguidas tentativas de fricção institucional, que alcançaram seu ponto máximo nos estertores do governo Bolsonaro, meses antes e até quase dois meses após as eleições de 2022, quando o presidente saiu do país, recusando-se a passar a faixa ao adversário eleito.

A derrota da pretensão de reeleição do então presidente provocou, imediatamente, uma justa e razoável sensação de alivio das tensões políticas e dos temores de amplos segmentos sociais. Percebeu-se uma rápida injeção de oxigênio num ambiente em que se vinha respirando um ar extremamente rarefeito. Ainda que o adversário vencedor fosse uma personalidade política controversa - que nem de longe podia mais ostentar o amplo consenso social existente em torno de sua figura política até uma década antes - e ainda que sua vitória tenha se dado por muito estreita margem de votos, até por causa disso a sensação de alivio disseminou-se, dada a noção precisa do perigo que foi afastado nas urnas. As instituições políticas saíram mais fortalecidas daquele processo eleitoral e um clima de expectativa e razoável colaboração recepcionou os primeiros passos do presidente eleito na composição política do Poder Executivo e na retomada de um diálogo fluente desse com os demais Poderes. As sombras no horizonte eram muitas a mitigar o otimismo, mas diziam respeito mais ao estado de coisas legado pelo antecessor, do que a algum juízo negativo prévio sobre a capacidade do sucessor enfrentar os desafios.

O que o novo/antigo presidente Lula e seu governo fizeram das suas favoráveis condições iniciais não é o foco deste artigo. Será uma variável de fundo, a ser comentada pontualmente, no decorrer da análise. O foco aqui é a fluente conexão entre aquele forte alivio discretamente esperançoso oferecido pelas urnas de 2022 e o momento crucial a que chega agora o julgamento do STF, sugerindo evocar o alívio.

No momento específico atual, os principais responsáveis pelo que se viveu no Brasil durante o período bolsonarista (com destaque para o capitão da aventura golpista) aparecem no banco dos réus perante o país que, até pouco mais de dois anos atrás, eles punham em desassossego. A relevância histórica e o caráter simbólico do ineditismo desse acontecimento vêm sendo frisados por muitos analistas, sendo-o, com grande agudeza e felicidade, num artigo de Tiberio Canuto (Viva a Democracia! Revista Será? https://bit.ly/45iq9m1) que compara analiticamente, inclusive com uma dimensão testemunhal, o que ocorre agora com os julgamentos, pelo regime militar, de adversários políticos previamente presos.  

Os réus da acusação de golpe de Estado estão sendo postos diante de fatos concretos, arrolados por investigação idônea e acompanhados de fartas evidências de uma trama golpista. Sendo muitas dessas evidências comprovadas ou comprováveis, elas pressionam os réus a apresentarem uma contraversão minimamente crível, o que, apesar do respeito ao amplo direito de defesa, até aqui não ocorreu e há pouca chance de ocorrer. No máximo, eles esboçam narrativas que podem, talvez, sustentar, em alguma medida, a continuidade da ação de adeptos seus no mundo da política, que hoje estão, quando não isolados, obrigados a dissimular seus propósitos, antes escancarados, ou mesmo a rever objetivos, para amoldarem-se a uma direita que se robustece mais na normalidade, do que na excepcionalidade que o governo anterior obstinadamente tentou provocar. Sendo mais preciso sobre a pressão normalizadora sofrida por políticos bolsonaristas, digo que ela deriva de condições novas, por sua vez ligadas ao protagonismo político do Congresso e à relevância que eleições legislativas adquiriram ultimamente.

Essas mudanças institucionais na dinâmica política do país não padecem de artificialismo malévolo e degenerativo, ditado pelo reacionarismo e /ou pelo interesse predatório da corporação parlamentar. É inegável que essas dimensões até politicamente espúrias existem e atuam, mas é equívoco de visão não enxergar elos recíprocos entre a busca de normalização do pragmatismo parlamentar e o cansaço e perda de eficácia eleitoral do discurso e do gestual da hiperpolarização. Uma inclinação detectável não só nas eleições legislativas de 2022 e nas municipais de 2024, como em sondagem recente que aponta mais de 60% dos eleitores desejosos de não verem nem Lula nem Bolsonaro na disputa presidencial, que é, aliás, o território privilegiado da lógica plebiscitária. Se o apelo à polarização binária começa a ter problemas em seu próprio terreno, há motivo bastante para encararmos com olhar menos óbvio a atitude conciliatória de “raposas” da política. Além do autointeresse, há, nessa atitude, radares sensíveis.

Por outro lado, a narrativa de vitimização até aqui esboçada, em redes sociais, pela defesa dos réus do processo do STF (à diferença de sua defesa jurídica, que parece mais apelar para um certo realismo) pode, talvez, encontrar mais abrigo em sentimentos sociais do que no mundo racional utilitário da política. Isso pela resiliência de percepções e afetos legados pela polarização extrema que se estendeu do contexto das eleições de 2014 e do impeachment de 2015/16, até o final do governo Bolsonaro. E também por alimentação daquele duelo, ainda hoje, por certos atores políticos de ambos os lados, que tensionam e problematizam a via do entendimento político. A retroalimentação da polarização extrema tem resistido a condições vigentes no mundo atual da política, que indicam a conveniência de superá-la.

Mas é bom não desprezar, nem subestimar, a manutenção da resiliência social, aquilo que vários analistas passaram a chamar de polarização afetiva. Um sentimento residual forte, que pode se comparar, por paradoxo, ao que o economista e cientista social Vilfredo Pareto chamou “persistência de agregados”, barreira robusta, interagente com o instinto de “combinações em geral” que, grosso modo e livremente, pode-se associar a impulsos progressistas e reformadores, também presentes na sociedade. São sentimentos ligados à segunda ordem de impulsos que a demora da polarização exaustiva contraria.

Quem nutre alguma esperança de mudança em direção a uma atualização política, a uma impulsão econômica com preservação ambiental e a uma maior coesão do tecido social ainda paradoxalmente esgarçado, festeja o rumo do atual capítulo do julgamento de Bolsonaro e seus militares implicados naquela tentativa de golpe de Estado, ao final de 2022, contra as eleições e seus resultados. Nos últimos dias ficaram em segundo plano versões controversas acerca de acontecimentos anteriores ou posteriores àquele ataque de nomes, sobrenomes e patentes de destaque, às instituições. Inclusive o ocorrido no dia 8 de janeiro de 2023, que antes vinha ocupando espaços generosos não só nas redes sociais, mas também no noticiário e em discursos políticos, a ponto mesmo de provocar uma contenda legislativa em torno de uma virtual anistia. Um dominó com alto potencial diversionista e desagregador.

Sabe-se que o enquadramento judicial dado à questão, até aqui, pelo Ministério Público e o próprio STF, é o de ver as ações de Bolsonaro e seus militares como parte de uma conspiração contínua que teria prosseguido até o 8 de janeiro quando, após a posse dos eleitos, já eram outras a temperatura política do país, como também as suas autoridades, Temos sob nossos olhos a ocasião de comparar a capacidade de comprovação e persuasão de tal tese com a que se dá diante da exposição cristalina dos movimentos dos réus do atual capítulo do processo judicial. A comparação sugere, no mínimo, uma inflexão de foco. 

Mais de uma vez, nesta coluna, assinalei o que me parece um equívoco, qual seja, confundir a denúncia, plena de evidências, de uma tentativa de golpe de estado, perpetrada por agentes públicos objetivamente identificados e nomeados, agindo quando estavam no pleno manejo do poder desse mesmo estado; e aquilo que parece mais ter sido, no 8 de janeiro, o desespero de parte não tão precisamente demarcada dos atores derrotados insuflando e financiando atos incivis de uma aglomeração de pessoas de mentalidade certamente autocrática e golpista, disposta a ir além das ações pacificas para praticarem um esperneio expressivo da sua frustração. Pessoas, porém, desprovidas de meios para fazer um desejo de golpe tornar-se, de fato, uma intenção em ato. Confundir as duas coisas, além de aumentar as possibilidades de se cometer injustiças em nome da Justiça, rebaixa o significado do julgamento dos mentores de uma tentativa concreta de golpe, para quem nenhuma proposta de anistia poderia sequer nascer, quanto mais vingar. Só foi possível conjecturar anistia porque foram quase nivelados, na narrativa pública, a pessoas comuns, tendentes ao anonimato político, ainda que possam e devam responder a processos judiciais. Mas esses processos, pedagógicos para a consolidação de uma cultura democrática, poderiam transcorrer com paciência e parcimônia máximas da Justiça e do Direito, sem o caráter politicamente crucial, para a república e o regime democrático, que é intrínseco ao julgamento reto, em tempo hábil, de chefes autocráticos pilhados em crime contra o Estado Democrático de Direito. São esses alhos que merecem ser servidos à sociedade, separados dos bugalhos.

Em coluna na Folha de São Paulo, a jornalista Mônica Bérgamo comenta que dirigentes do PT estariam preocupados com a “velocidade” imprimida pelo ministro Alexandre de Moraes ao julgamento de Bolsonaro (Mônica Bérgamo: Prato quente – FSP/Ilustrada, em 12.06.25). O receio seria a liderança do ex-presidente sobre o conjunto da direita e sua força para controlar o preparo do cardápio eleitoral cessarem antes de um momento mais conveniente à reeleição do presidente Lula. Esse momento ideal seria, conforme análises de dirigentes petistas, meados de 2026. Acreditam que, se mantido, até lá, certo grau de incerteza sobre o futuro de Bolsonaro, a direita ficaria mais limitada na fixação de sua estratégia eleitoral. O espectro de um Bolsonaro muito influente teria efeito inibidor de alternativas unitárias de candidaturas e chapas da direita capazes de desafiar o presidente. Mais ou menos como ocorreu, há 8 anos, quando Lula, mesmo preso, manteve a esquerda presa com ele, sob o bordão do “Lula livre”, até praticamente vésperas da eleição de 2018. Um compromisso moral com o líder emprestou legitimidade a um cálculo e a um discurso políticos. Isso ajudou muito, como sabemos, a desgastar e imobilizar o governo Temer, mas beneficiou o adversário radical, que prosperou à sombra da polarização extrema.

Tal cenário, caso se repetisse, com sinais trocados, em 2025/2026, decerto daria tempo a Lula (cuja popularidade declina, mas não se compara à impopularidade de Temer às vésperas de 2018) de tentar arrumar a casa desarrumada do seu governo e perfilar aliados em torno da sua reeleição, hipótese que também as regras negavam a Temer, em 2018. A aposta seria ainda mais feliz se Bolsonaro apontasse o dedaço para a candidatura da esposa, ou outra solução doméstica e/ou ideológica da extrema-direita. No mínimo – seguem as conjecturas desejosas - isso fraturaria a direita. Porém, o máximo do desejável para o PT seria esse nome identitário do bolsonarismo e da extrema-direita chegar ao segundo turno. Afinal, todas as sondagens de opinião feitas até aqui apontam o intuitivo, isto é, menos dificuldade para Lula, ao fim e ao cabo, bater uma candidatura adversária com perfil extremista do que a do governador de São Paulo ou outro dos nomes mais moderados de direita que têm posto o rosto em cena até agora.

Se o comentário da jornalista estiver amparado em informação correta – e essa hipótese é forte, diante do seu reconhecido trânsito no mundo político brasileiro e junto ao campo da esquerda, em particular – registra-se um descompasso entre os sentidos da análise de tais dirigentes petistas e o da que alinhavei, neste artigo, sobre a importância, para as instituições republicanas e o regime democrático, do atual estágio do julgamento do STF. Neste último caso, os focos são a institucionalidade, a estabilidade política e a sustentabilidade da democracia.  No primeiro caso, o foco é a estratégia para a competição eleitoral.

Estou distante de quem vê na competição eleitoral um terreno “menor”, no sentido de menos nobre do que o da política de um bem comum fundado em improvável virtude prévia de determinados atores políticos. Se não houvesse, na sociedade, pluralidade de valores, crenças e interesses dignos de consideração, ela dispensaria o pluralismo político. Mas sendo a pluralidade social um fato independente de vontade política, o realismo pluralista é vital. Obriga grupos e lideranças políticas a moderarem a vontade de poder e preservarem fins compartilhados, sem o que a disputa vira guerra e, como em toda guerra, o próprio poder político naufraga. É boa hipótese o feitiço vitimar o feiticeiro, como está sendo visto no julgamento de Jair Bolsonaro. Nesse sentido, o processo judicial, se separar alhos de bugalhos, pode estimular uma retomada, ao menos, do alívio discretamente esperançoso.

*Cientista político e professor da UFBA


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