DECLARAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS, 60 ANOS DEPOIS
Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo
"Considerando que o desprezo e o desrespeito pelos direitos humanos resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da Humanidade e que o advento de um mundo em que os homens gozem de liberdade de palavra, de crença e da liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade foi proclamado como a mais alta aspiração do homem comum. Considerando essencial que os direitos humanos sejam protegidos pelo Estado de Direito, para que o homem não seja compelido, como último recurso, à rebelião contra tirania e a opressão."
Declaração Universal dos Direitos Humanos, 17 de dezembro de 1948.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos completa 60 anos. As décadas de 20 e 30 do século passado, os mais velhos sabem, testemunharam o massacre humano generalizado e a tragédia do Holocausto. A experiência do inumano não deixou outro caminho aos sobreviventes senão o da reafirmação e atualização da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão promulgada em 1789. Descontadas as manobras humanitárias da IV Frota, hoje, os princípios exarados nas declarações estão em franco declínio, a despeito da retórica democrática, como bem observou Luciano Cânfora.
Selecionei para uma exposição livre os artigos XI, XII, XIX, XXV, XXVI da Declaração de 1948. Lá vai. Toda a pessoa acusada de um ato delituoso tem o direito de ser presumida inocente até que sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público, no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa. Ninguém poderá ser inculpado por qualquer ação ou omissão que, no momento, não constituam delito perante o direito nacional ou internacional. Tampouco será imposta pena mais forte do que aquela que, no momento da prática, era aplicável ao ato delituoso.
É considerada intolerável a interferência na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência, (e atenção!) e o desrespeito à sua honra e reputação. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques. O cidadão (note o leitor, o cidadão) tem direito à liberdade de opinião e de expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações por quaisquer meios e independente de fronteiras.
Na impossibilidade de encontrar meios adequados para conter a violência e a onda criminosa, a sociedade civil apela para medidas extremas
Todos têm direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência fora de seu controle. A maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistências especiais. Todas as crianças nascidas dentro ou fora do matrimônio gozarão da mesma proteção social. A instrução é um direito de todos e ela será gratuita pelo menos nos graus elementares e fundamentais. Termino com o artigo XVII, especialmente dedicado a Bush filho: "Toda pessoa terá direito a uma ordem social e internacional em que os direitos e liberdades estabelecidos na presente Declaração possam ser plenamente realizados".
Tenho a impressão que, transcorridos 60 anos da promulgação desse cardápio de boas intenções, a opinião da maioria continua desconfiada do respeito às formalidades da lei. Exige uma solução mais rápida e drástica para a realização da justiça, ainda que à custa de tropelias ilegais. (Quanto aos direitos sociais e econômicos, sofrem o ataque sistemático da aliança plutocrático-midiática)
Vou me valer de um texto de Paul Veyne sobre Michel Foucault, um dos estudiosos das formas históricas assumidas pelas instituições encarregadas de vigiar e punir.
As metamorfoses do direito penal ao longo da história, diz Foucault, revelam que não é suficiente dizer que sob o Antigo Regime as punições atrozes refletiam a "rudeza dos costumes". Nos suplícios terríveis dessa época, a soberania real se abatia com toda a sua força sobre indivíduo rebelde. As cerimônias cruéis tinham o propósito de mostrar a todos a desproporção de forças entre o rebelde e o rei.
Desde a Idade das Luzes, a punição, inflingida por um aparato administrativo especializado, torna-se preventiva e corretiva. A prisão é uma técnica coercitiva para reeducar o cidadão que desrespeitou a lei. Michel Focault procura mostrar, em sua investigação arqueológica, que não se trata apenas de um progresso humanitário, mas de uma mudança radical do discurso sobre os padrões de convivência entre os humanos.
O Estado, enquanto detentor do monopólio da violência, está permanentemente dilacerado entre o dever de impor tempestivamente a sanção legal aos transgressores da lei e a missão de impedir que a sociedade seja submetida à tirania do soberano absolutista e à crueldade de seu métodos punitivos. Paradoxalmente, como diz o preâmbulo da Declaração, a inobservância do princípio da legalidade processual está prestes a reinstaurar a guerra privada e o favorecer o aparecimento de alguma forma de despotismo extralegal.
Na impossibilidade de encontrar os meios adequados para conter a violência e a onda criminosa, o temor hobbessiano da destruição e da morte engendram a fuga para as campanhas de opinião que apelam para medidas extremas. São manifestações de impotência, travestidas de ações da sociedade civil, em cujos becos e desvãos escuros se acumulam os miasmas que intoxicam a vida social com os venenos da suspeita generalizada e do medo.
O problema, hoje, não está rudeza dos costumes, digna da inteligência de chimpanzés, ou coisa pior. Graves são a desagregação do aparelho de Estado, a autonomização e a falta de transparência das burocracias encarregadas de vigiar e punir, e sua aliança ameaçadora com o poder repressivo "privado" das grandes corporações da mídia. Essa mixórdia institucional reflete as angústias que transtornam a alma da sociedade.
Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, e professor titular do Instituto de Economia da Unicamp, escreve mensalmente às terças-feiras.
Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo
"Considerando que o desprezo e o desrespeito pelos direitos humanos resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da Humanidade e que o advento de um mundo em que os homens gozem de liberdade de palavra, de crença e da liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade foi proclamado como a mais alta aspiração do homem comum. Considerando essencial que os direitos humanos sejam protegidos pelo Estado de Direito, para que o homem não seja compelido, como último recurso, à rebelião contra tirania e a opressão."
Declaração Universal dos Direitos Humanos, 17 de dezembro de 1948.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos completa 60 anos. As décadas de 20 e 30 do século passado, os mais velhos sabem, testemunharam o massacre humano generalizado e a tragédia do Holocausto. A experiência do inumano não deixou outro caminho aos sobreviventes senão o da reafirmação e atualização da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão promulgada em 1789. Descontadas as manobras humanitárias da IV Frota, hoje, os princípios exarados nas declarações estão em franco declínio, a despeito da retórica democrática, como bem observou Luciano Cânfora.
Selecionei para uma exposição livre os artigos XI, XII, XIX, XXV, XXVI da Declaração de 1948. Lá vai. Toda a pessoa acusada de um ato delituoso tem o direito de ser presumida inocente até que sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público, no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa. Ninguém poderá ser inculpado por qualquer ação ou omissão que, no momento, não constituam delito perante o direito nacional ou internacional. Tampouco será imposta pena mais forte do que aquela que, no momento da prática, era aplicável ao ato delituoso.
É considerada intolerável a interferência na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência, (e atenção!) e o desrespeito à sua honra e reputação. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques. O cidadão (note o leitor, o cidadão) tem direito à liberdade de opinião e de expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações por quaisquer meios e independente de fronteiras.
Na impossibilidade de encontrar meios adequados para conter a violência e a onda criminosa, a sociedade civil apela para medidas extremas
Todos têm direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência fora de seu controle. A maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistências especiais. Todas as crianças nascidas dentro ou fora do matrimônio gozarão da mesma proteção social. A instrução é um direito de todos e ela será gratuita pelo menos nos graus elementares e fundamentais. Termino com o artigo XVII, especialmente dedicado a Bush filho: "Toda pessoa terá direito a uma ordem social e internacional em que os direitos e liberdades estabelecidos na presente Declaração possam ser plenamente realizados".
Tenho a impressão que, transcorridos 60 anos da promulgação desse cardápio de boas intenções, a opinião da maioria continua desconfiada do respeito às formalidades da lei. Exige uma solução mais rápida e drástica para a realização da justiça, ainda que à custa de tropelias ilegais. (Quanto aos direitos sociais e econômicos, sofrem o ataque sistemático da aliança plutocrático-midiática)
Vou me valer de um texto de Paul Veyne sobre Michel Foucault, um dos estudiosos das formas históricas assumidas pelas instituições encarregadas de vigiar e punir.
As metamorfoses do direito penal ao longo da história, diz Foucault, revelam que não é suficiente dizer que sob o Antigo Regime as punições atrozes refletiam a "rudeza dos costumes". Nos suplícios terríveis dessa época, a soberania real se abatia com toda a sua força sobre indivíduo rebelde. As cerimônias cruéis tinham o propósito de mostrar a todos a desproporção de forças entre o rebelde e o rei.
Desde a Idade das Luzes, a punição, inflingida por um aparato administrativo especializado, torna-se preventiva e corretiva. A prisão é uma técnica coercitiva para reeducar o cidadão que desrespeitou a lei. Michel Focault procura mostrar, em sua investigação arqueológica, que não se trata apenas de um progresso humanitário, mas de uma mudança radical do discurso sobre os padrões de convivência entre os humanos.
O Estado, enquanto detentor do monopólio da violência, está permanentemente dilacerado entre o dever de impor tempestivamente a sanção legal aos transgressores da lei e a missão de impedir que a sociedade seja submetida à tirania do soberano absolutista e à crueldade de seu métodos punitivos. Paradoxalmente, como diz o preâmbulo da Declaração, a inobservância do princípio da legalidade processual está prestes a reinstaurar a guerra privada e o favorecer o aparecimento de alguma forma de despotismo extralegal.
Na impossibilidade de encontrar os meios adequados para conter a violência e a onda criminosa, o temor hobbessiano da destruição e da morte engendram a fuga para as campanhas de opinião que apelam para medidas extremas. São manifestações de impotência, travestidas de ações da sociedade civil, em cujos becos e desvãos escuros se acumulam os miasmas que intoxicam a vida social com os venenos da suspeita generalizada e do medo.
O problema, hoje, não está rudeza dos costumes, digna da inteligência de chimpanzés, ou coisa pior. Graves são a desagregação do aparelho de Estado, a autonomização e a falta de transparência das burocracias encarregadas de vigiar e punir, e sua aliança ameaçadora com o poder repressivo "privado" das grandes corporações da mídia. Essa mixórdia institucional reflete as angústias que transtornam a alma da sociedade.
Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, e professor titular do Instituto de Economia da Unicamp, escreve mensalmente às terças-feiras.
Nenhum comentário:
Postar um comentário