Valor Econômico
Muito mais que uma cordialidade entre
vencedor e perdedor
O telefonema mais importante dos próximos
quatro anos - uma ligação rápida mas crucial para pacificar minimamente o país
e tirar os brasileiros da exaustão emocional, para abrir caminho à
reconciliação das famílias, à volta de amizades desfeitas pela política, à
troca de gentileza entre vizinhos - tem data para acontecer: dia 2 de outubro
(primeiro turno das eleições presidenciais) ou 30 do mesmo mês (segundo turno).
Não vale declaração às redes de TV, nota do
QG de campanha ou postagem nas redes sociais. Tem que ser telefonema, coisa de
um ou dois minutos, filmado por ambos os lados para farta divulgação. O
candidato que sair derrotado das urnas ligará para o vitorioso. Reconhecerá a
derrota e desejará sucesso ao eleito. Dirá que as divergências entre eles não o
impedirão de trabalhar juntos pelo futuro do Brasil. O ganhador devolverá o
aceno. Agradecerá ao segundo colocado no discurso da vitória.
Numa das cenas antológicas de “Entreatos”, o documentário de João Moreira Salles que narra bastidores da campanha petista em 2002, ainda são nove e vinte da noite no domingo eleitoral quando Lula recebe a ligação do rival tucano. Ao desligar, vira-se para os companheiros: “Era o [José] Serra, reconhecendo que perdió. E que yo ganhei”. Respeito.
Salto para 2014. Três eleições depois, em
um hotel de Brasília, Dilma Rousseff comemorou seu triunfo falando cinco vezes
em disposição e compromisso com o “diálogo”. Foi a vitória mais apertada de
todo o período pós- redemocratização. O perdedor, Aécio Neves, foi
completamente ignorado no discurso de Dilma.
A ligação do derrotado e o agradecimento do
ganhador não significam menos firmeza opositora, nem baixar a guarda para
adversários. Demonstram apenas que a política não pode ser mais violenta que
UFC. Após as eleições, o ringue está sempre aberto aos duelos. Só que dedo no
olho, mordida na orelha e chute abaixo da cintura devem ser proibidos. Tudo tem
limite.
Os professores Steven Levitsky e Daniel
Ziblatt, da Universidade de Harvard, ensinaram que as democracias morrem quando
a tolerância mútua vira escasso no mercado político. “Diz respeito à ideia de
que, enquanto nossos rivais jogarem pelas regras institucionais, nós
aceitaremos que eles tenham direito igual de existir, competir pelo poder e
governar. Podemos divergir, e não gostar deles nem um pouco, mas os vemos como
legítimos.”
Completam: “Isso significa reconhecermos
que os nossos rivais políticos são cidadãos decentes, cumpridores da lei,
patriotas - que amam nosso país e respeitam a Constituição como nós. O que quer
dizer que, mesmo acreditando que as suas ideias são idiotas, não as vemos como
uma ameaça existencial. Tampouco os tratamos como subversivos, desqualificados
ou traidores. Podemos derramar lágrimas na noite da eleição, quando o outro
lado vence, mas não consideramos isso um acontecimento apocalíptico”.
Se essa noção de tolerância foi perdida,
refletindo-se entre os colegas do escritório ou no almoço familiar de domingo,
é sinal de que a polarização pode ameaçar a própria democracia.
Há cinco meses, o Carnegie Endowment for
International Peace - um centro de estudos baseado em Washington e com
ramificações em várias partes do mundo - lançou um texto que aborda justamente
isso: o que ocorre com democracias quando elas se tornam “perniciosamente”
polarizadas?
A publicação lista 16 casos (veja alguns no
gráfico abaixo) em que sociedades polarizadas conseguiram se acertar e
cicatrizar feridas. Na Colômbia (2009-2011), a corte eleitoral barrou tentativa
de Gustavo Uribe de mudar a Constituição e buscar um terceiro mandato. Em 2006,
no Timor Leste, uma ameaça de rebelião militar fez necessária a presença de
forças estrangeiras e a renúncia do primeiro-ministro. O Brasil (1989-1993) é
um dos citados, com a lembrança do impeachment de Fernando Collor, de
estabilização da e eleição de Lula dez anos depois.
O texto do Carnegie enumera também diversos
países que se (re)polarizaram e ainda estão fraturados: Argentina (a partir de
2013), o próprio Brasil (de 2013 em diante), EUA (desde 2015), México (2019 até
hoje).
Da Índia à Turquia, da Hungria de Viktor Orbán
à Polônia do Partido Lei e Justiça (PiS), a publicação argumenta que “níveis
extraordinários de polarização têm se mostrado uma característica importante da
onda em curso de declínio democrático”. Um ponto em comum é que seus líderes
têm confiado, segundo o relatório, “em estratégias populistas e polarizadoras
para ganhar e reter poder, semeando divisão a fim de energizar apoiadores,
enquanto frequentemente reivindicam a necessidade de desafiar certos princípios
democráticos, com o objetivo de superar a resistência de seus oponentes e impor
sua agenda”.
Às vezes, jogar dentro das quatro linhas é
seguir regras não escritas. É como na pelada: o jogo termina com dez minutos ou
dois gols; quem ganha fica, quem perde cede o lugar; se ninguém quer pegar no
gol, tem rodízio entre todo mundo. Para a bola e a democracia rolarem, é
preciso acatar normas informais. Não há um roteiro para despolarizar, mas
qualquer tentativa passa por um telefonema do derrotado e um agradecimento do
vencedor. Quem estará de cada lado, nesse cessar-fogo, importa menos.
Um comentário:
Não creio que Bolsonaro,se perder,dára esse telefonema,só se for pra xingar o Lula.
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