Oito anos depois de deixar a Presidência, FH diz que o país mudou muito, e para melhor, mas ainda falta
Helena Celestino, Luiz Antônio Novaes, Silvia Amorim e Silvia Fonseca
RIO - "Arrependimento? Se for ficar na política, acho que poderia ter sido mais suave, teria me desgastado menos e conseguido mais". A crítica de Fernando Henrique Cardoso ao seu jeito presidente de ser combina com o bom humor e a língua afiada que mantém até hoje ao chegar aos 80 anos de idade. Completamente adaptado à vida da planície depois dos oito anos no Palácio do Planalto, o ex-presidente está de bem com a vida. É generoso ao falar de aliados e opositores -, mesmo se ainda se ressente de como foi tratado por Lula - mas não perde a oportunidade de rir dele mesmo e dos personagens do mundinho político brasileiro. Distante do dia a dia partidário, criou uma rotina prazeirosa, povoada por viagens, livros, amigos e filhos. Mora sozinho num amplo apartamento em Higienópolis - o bairro paulistano que ajudou a tornar conhecido como reduto dos tucanos - e é com gosto que passa as manhãs em casa, escrevendo dois novos livros - um de reflexões sobre o mundo contemporâneo e outro revisitando a obra dos pioneiros do pensamento sociológico e político brasileiro, como Joaquim Nabuco, Gilberto Freire e Florestan Fernandes.
- Nunca consegui trabalhar fora de casa - conta, revelando o vício do intelectual que detesta escrever de terno e gravata. - Já escrevi de pijama e até de calção, mas no Alvorada não dava para pisar naqueles tapetes de pé molhado - brinca.
O estilo sociólogo chique predomina na decoração do apartamento. É refinado, mas despojado e com marcas de uso. Pelas paredes e estantes, objetos de arte e quadros, muitos deles recebidos de presente na época de presidente. À vista, livros de arte, álbuns com fotos ao lado de Ho-Chi-Min numa viagem ao Vietnã, um tucano enquadrado e uma bússula pintada a óleo perto de uma grande mesa de madeira na sala de jantar. Em lugar de destaque, dois Mirós, uma foto de Dona Ruth e, na parede ao lado, uma imagem da casa onde nasceu, agora quase toda tomada pelas raízes de uma árvore, na Rua Bambina, em Botafogo, no Rio. Tem dois escritórios em casa, mas só guarda nas estantes uns 500 livros. A maior parte de sua biblioteca de 20 mil volumes está no Instituto Fernando Henrique, onde à tarde trabalha.
- Agora, quando eu quero um livro, tenho de pedir à bibliotecária. Fica um vai e vem... Quando estou escrevendo, vou procurar o texto que quero, o livro não está... Mas, na vida atual, morando em vários países, não dá para ter grandes bibliotecas em casa, desapeguei desde que a polícia (na ditadura) levou meus livros lá da casa do meu pai - diz, contando que agora viaja só com um iPad. Em sua nova rotina doméstica, mais de oito anos depois, ele não desdenha, mas não sente saudades da vida nos palácios de Brasília, onde não conseguia abrir uma porta e nadava observado por seguranças.
- Palácio é lugar de intriga. Se tiver imaginação, você acha que é rei. Mas, se tiver senso de realidade, percebe que mora mesmo é numa repartição pública - diz com humor.
Uma repartição pública com perigosas armadilhas, como a dos documentos oficiais protegidos por sigilo eterno que deixou para seus sucessores. Assinado no último dia do seu mandato, em 31 de dezembro de 2001, o projeto chegou à sua mesa numa pilha de papéis.
- Não recebi pressão nem do Itamaraty, nem dos militares. Mas alguém botou isso lá, sem ter passado pela Casa Civil.
Neste sábado, vai festejar o aniversário só com a família, mas o festival de comemorações promete durar. Neste domingo, a Osesp fará um concerto em sua homenagem. Semana passada, jantou na Sala São Paulo com 500 amigos, daqueles cultivados pela vida, nenhum deles encontrado na lista de Facebook. Em agosto, pretende fazer uma festa no Rio, mas a agenda por agora está cheia.
Nesses 80 anos de vida, em que momentos ou em que papéis o senhor se sentiu mais confortável?
FERNANDO HENRIQUE: Para ser franco, eu me sinto à vontade em muito papéis. Eu não desgostei do exercício da Presidência. Nunca me queixei de doença, cansaço, embora às vezes estivesse cansado. Eu não achava mau, assim como me adaptei imediatamente a outro estilo de vida (ao deixar a Presidência). Fui dar aula de novo. Aula é um modo de dizer porque em Brown (University), onde eu era professor-at-large, mas recebia alunos, dava seminários. Eu me adaptei. Depois, passei a ter funções em organizações internacionais, fui presidente do Clube de Madrid. Hoje participo do grupo do (Nelson) Mandela, que é muito ativo, negociações pelo mundo afora, uma porção de coisas. E participo de vários conselhos e fundações...
Mas no Palácio era possível conciliar os papéis de presidente e intelectual?
FH: Com dificuldade. Nunca deixei de ter um certo olhar distante, que é o do intelectual, o que é uma desvantagem na vida política.
Por que é desvantagem?
FH: Porque você se refreia, tem um olhar crítico, então não faz uma porção de coisas que os políticos têm que fazer. Você tem mais autocrítica, mais freios. Mas isso tem uma vantagem, que me ajudou muito, que foi não entrar no olho do furacão. Quando, por exemplo, atacam muito pela imprensa, ou a própria imprensa ou os políticos, percebo que estão atacando um personagem, não eu como pessoa. Sei me distanciar.
Como presidente, qual a principal lição que o senhor tirou para o pensamento do sociólogo, para a sua percepção da realidade brasileira?
FH: Você fica com uma visão muito mais rica e vê que as coisas são muito mais difíceis e complicadas. Os interesses são muito mais emaranhados, é muito mais difícil obter uma convergência para alguma coisa, e você não tem soluções simplistas para os grandes problemas. Se tivesse, estariam resolvidos. Você passa a ser mais tolerante, não no sentido de permissivo, mas entende mais o outro. Vê como são as pessoas. Acho que, em parte, a liderança presidencial tem de ser intuitiva, veja o Lula, mas, quando você tem um pouco mais de capacidade de análise, fica vendo por que as pessoas estão fazendo isso ou aquilo. Ao mesmo tempo que desculpa umas, condena outras.
Mas isso faz ficar mais pessimista ou otimista a respeito do mundo?
FH: Mais realista. Não digo pessimista porque dá para avançar. Meus colegas acadêmicos puro-sangue sempre ficavam um pouco horrorizados de ver como é que eu lidava com o que, para eles, é uma gente despreparada. Eu dizia que eles não eram preparados para umas coisas, mas muito bem preparados para o que eles fazem. E eu já tinha a experiência do Senado. Minha transformação de papéis foi aos poucos, porque fui senador por muito tempo. É verdade que era diferente; quando fui para o Senado, no tempo do governo Figueiredo, o poder do Congresso era pequeno, e a pressão sobre ele era menor. Mas depois veio a fase da Constituinte, que foi uma grande escola. Foi um momento muito rico da nossa História, e nunca estudado. Fui um dos relatores das regras para fazer a Constituição, eu e (Nelson) Jobim. Abrimos espaço para emendas populares, a quantidade de pessoas que se manifestou foi brutal. Então, você vê um país sonhando, às vezes delirando, às vezes com pesadelo... Fui forçado a participar dos processos de negociação. Era muito interessante o que estava acontecendo. E aí você vê como é intrincado mexer numa sociedade como a brasileira.
Qual a mais forte ilusão de sociólogo que a Presidência destruiu? O senhor entendia menos como agiam os políticos ou os empresários, o mercado?
FH: Os políticos eu entendia, mas a inexperiência maior era com o mercado. Não era fácil entender como funcionava o mercado financeiro. Naquela época, eram crises sobre crises. Muitas vezes a situação objetiva não era tão ruim, e a bolsa caía... Nunca houve pressão no sentido de que alguém vem aqui para pressionar. Isso não existe. Mas especulação (financeira)...
E as divergências dentro do governo?
FH: Também havia, mas você tem que mediar essas divergências e, quando necessário, tomar partido.
Foi um dos momentos mais difíceis do seu governo (a crise cambial de 99)?
FH: Sem dúvida. Foi a mais difícil de todas. Mas veja como há pouca compreensão de como é o processo real. A uma certa altura, o Köhler (Horst), que era o diretor-geral do FMI, veio ao Brasil, eu estava no Rio, e nos encontramos no BNDES. Saiu na imprensa que ele veio aqui para me dar instruções. Na realidade, ele veio aqui para me agradecer, porque para a eleição dele - o Schröder (Gerhard), que era o chanceler da Alemanha, tinha me pedido para apoiar o Caio Koch-Weser, um brasileiro, e eu concordei. Acontece que o Caio não foi aceito pelos americanos. Então, o Schröder me ligou de novo e pediu para eu ajudar com uns votinhos na América Latina para o Köhler. Havia um outro que era muito bom, o Stanley Fischer, que tinha ajudado no Plano Real, deu uns palpites. Mas, enfim, Köhler veio para agradecer, não havia pressão do FMI. Não é assim que as coisas acontecem. Mas o mais difícil, pessoalmente, vou dizer: é demitir um ministro que é seu amigo e que não fez nada de errado, mas a situação o obriga.
O senhor se refere a...
FH: Ao Clóvis Carvalho e ao Celso Lafer. É difícil.
O senhor acha que a presidente Dilma já conheceu esse lado amargo logo de início?
FH: Sim, não sei se na mesma proporção que eu, porque o Clóvis e o Celso eram meus amigos. Eles são hoje do conselho do meu instituto. Demiti o Xico Graziano, que está comigo também. No caso do Clóvis, o motivo foi um discurso que foi parar na imprensa como se fosse um choque com o que defendia o Malan. Você não pode permitir choque público com o ministro da Fazenda. Não era a intenção dele, mas intenção é uma coisa...
O senhor então discorda do que disse o ex-presidente Lula, que a opinião pública morreu?
FH: Eu discordo. Se tivesse morrido, não teria acontecido tudo o que acontece, inclusive agora.
E como o senhor vê o papel da opinião pública?
FH: O que é a opinião pública aqui? Antigamente era quem lia a imprensa. Basicamente era isso. Agora é quem vê a televisão e a internet. E isso faz pressão. Não morreu, não, é o contrário.
O senhor identifica um novo momento na sociedade, nesse aspecto?
FH: Ah, não tenho dúvida. E crescentemente vai ser assim, você vai ter uma influência cada vez maior da sociedade conectada, que se manifesta cada vez mais. É curioso porque essa conexão pode produzir "derrubamentos", derruba alguém, mas não constrói, porque não tem como fazer a coisa funcionar. É para rupturas. Veja o que aconteceu agora no mundo árabe. Dá o contágio, pega, e se movimenta. Agora, isso não dispensa a ação institucional. O problema hoje é que você tem uma sociedade que está se conectando crescentemente, e o lado institucional não sabe se relacionar com isso. Dá a impressão de que algumas instituições envelheceram, não percebem que têm que mudar e não sabem para que lado vão.
Por exemplo?
FH: Qualquer pesquisa de opinião põe o Congresso em último lugar. É sintoma de que a instituição não está sendo aceita pela sociedade tal como é. E a sociedade não toma conhecimento do Congresso. Sofre as consequências de algumas decisões, mas não se preocupa; no dia a dia, se preocupa com outras coisas. Pode ver: quais são os temas debatidos na internet e quais os debatidos no Congresso? São dois mundos. Acho que esse é o sintoma de um problema grave na sociedade atual. Como o Congresso é indispensável e os partidos também, é um problema. Porque não vai ter jeito sem partido e sem Congresso.
Não se pode dizer que é porque o Congresso brasileiro é muito ruim?
FH: Não, porque é um fenômeno que acontece no mundo inteiro.
O que falta para o Brasil chegar a ser um país de primeiro mundo? Quando o senhor saiu, admitiu que não tinha conseguido resolver a questão da segurança, e disse que o presidente que resolvesse isso...
FERNANDO HENRIQUE: O que falta? Não é renda, porque ela está encaminhada. As empresas brasileiras, privadas e públicas, avançaram. É uma coisa importante: a empresa pública brasileira, em função do que eu fiz, virou empresa, deixou de ser repartição pública, então ela tem capacidade. A Petrobras, por exemplo, não foi só quebrar o monopólio; nós mudamos como é que opera, para competir. Não estávamos preparando para privatizar, mas para funcionar como empresa privada, sem influência do setor político. Bom, então as empresas avançaram, a mídia avançou, parte da universidade avançou. O que não avançou? O acesso à Justiça. Toda a questão de segurança está melhorando, mas muito lentamente. Você não tem ainda cidadania. Tem acesso à educação, mas a qualidade deixa a desejar. Tem acesso à saúde, mas o problema também é de qualidade. Saímos da fase de escassez para uma fase do tem mas não serve, tem mas não funciona. Em vários aspectos. Talvez a coisa seja educação mesmo. Porque ter PIB alto é bom, mas a Dinamarca tem um PIB menor que o nosso...
O que deveria ser feito para melhorar a educação? O atual ministro da Educação diz que não pode ter um choque, que é um processo lento...
FH: É verdade. Eu não acho que o ministro atual seja um mau ministro. Paulo Renato foi um bom ministro. Portanto, a educação teve bons ministros. Deixe-me ser um pouco mais amplo. Acho que estamos um tanto sem estratégia no Brasil, no geral. Não estou falando só do governo. Tenho horror a essa ideia de que falta um projeto nacional, porque isso é uma visão totalitária, a famosa utopia totalitária. Acho que não é isso. Numa sociedade democrática você tem de ter uma convergência de objetivos. Não é alguém que, com uma alavanca de governo ou partido, faz. Essa é a grande diferença entre o PT e o PSDB. O PT acredita que o partido toma conta do Estado, e que o Estado muda a sociedade. Ele não acreditava nisso no passado. Ele nasceu da sociedade, mas esqueceu disso. No fundo, é mais autoritário. Mas precisa ter uma estratégia que seja convergente. O que todos queremos? Queremos passar de uma sociedade rica e desigual para uma só mais igualitária ou queremos mais que isso? Cuba e Coreia são igualitárias. Igualdade é um valor, mas não é absoluto. Precisamos querer mais do que isso, uma sociedade com valores de participação, democracia, liberdade, respeito ao indivíduo, de Justiça. Então, acho que não temos uma visão compartilhada do futuro. Aqui se tomam grandes decisões sem o país saber. As decisões sobre petróleo, ninguém discutiu. Sobre ter mais usinas nucleares, ninguém discutiu. Falta a sociedade se engajar nessa questão. Na educação é a mesma coisa. Vamos fazer o trem-bala! Por quê? Pode ser que seja necessário, mas não foi discutido. Voltamos a um período militar, em que você não transformava em debate público as decisões de Estado. Se não tem isso, somado a uma sociedade que não confia nas instituições, como ter uma convergência de todos? Não tem. Fica cada um por si e Deus por todos. E sabe quem manda? É o mercado, o que comanda mais hoje é o mercado, não o Estado. Eu sou contra isso. Numa sociedade democrática, não pode ser o mercado que comanda, tem que ser a sociedade.
Mas no seu tempo de presidente, quais foram os grandes temas? E acha que a sociedade se engajou e discutiu?
FH: Reforma agrária, previdência social, estabilização. Como é que fizemos a estabilização? Não foi impondo. Dissemos quais eram os passos, o tema... O Congresso discutia. Nos últimos anos, o Congresso perdeu ressonância na sociedade porque carimba medida provisória.
Mas será que a sociedade também não perdeu o ímpeto?
FH: É possível que sim, em decorrência da prosperidade. Isso não é culpa de ninguém. Estou aqui fazendo uma análise sociológica. Há uma desmobilização que vem junto da prosperidade. A prosperidade é boa, mas não é suficiente para se chegar ao primeiro mundo. Acho que estamos melhorando muito. Tenho 80 anos. Nasci em 1931. Pensa o que era o Brasil quando nasci.
O senhor nasceu com a revolução de 30.
FH: Junto com a revolução de 30, em que minha família toda estava metida. O que era aquele Brasil? Quanto havia de analfabetos? 70%, 75%. Hoje são 10%. Só havia uma estrada pavimentada, que ligava o Rio a Juiz de Fora. Quando vim para São Paulo, tudo o que vocês veem lá (apontando para a janela de seu apartamento, de onde se vê o bairro de Perdizes) era lama. Isso era o Brasil, não tinha estrada. Então mudou tudo no Brasil, mudou tudo, e para melhor.
Na sua biografia, o senhor disse que conheceu a pobreza por livros, que era uma consequência desse Brasil, onde a pobreza era uma coisa distante...
FH: Distante. Eu fiz pesquisa no início da minha carreira sobre negros. Andei muito em favelas, e você entrava na maior tranquilidade porque a diferença de classe era tão marcada que o pessoal não mexia. Estudei no Colégio Perdizes. Tinha a serraria do Maluf, que era do pai dele, nessa rua. Então, me lembro que tinha mais adiante a fábrica do Matarazzo. Na hora do almoço, ficavam os operários na calçada, comendo na marmita, e, se passasse alguém engravatado, eles abriam espaço... Então a sociedade do passado é inaceitável. A de hoje é mais igualitária, as pessoas reivindicam, olham cara a cara. Mudou para melhor.
Quais os grandes momentos de transformação no país nesses 80 anos? O primeiro choque, o senhor lembrou, foi dado por um Estado forte; não há uma contradição aí?
FH: Não, naquele momento não tinha alternativa. E até hoje o Estado é fundamental. Não gosto é da ideia de um projeto (imposto). Mas claro que foi, o Estado é fundamental, e até hoje. E, curiosamente, as grandes transformações econômicas do Getúlio, ele tentou não fazer pelo Estado. Volta Redonda, ele tentou fazer pela iniciativa privada, mas não tinha como ser. Quem fez a Embraer foi a Aeronáutica. E certamente haverá hoje muitas coisa que ou o Estado faz ou ninguém faz. A ideia de pensar que é só o mercado, não! O Estado tem um papel importante. Agora, o que não pode é ter autoritarismo.
Mas quais os momentos de grande transformação?
FH: Para mim, primeiro, a Segunda Guerra Mundial. Meu pai era militar, nós mudamos de novo para o Rio, Copacabana tinha blecaute, ensaios de bombardeios. Então, na época da guerra, o Brasil deu um salto porque fizeram a chamada substituição de importações forçada. Não podia importar, começou a se produzir aqui. Foi um boom da indústria têxtil e urbanizou mais. Mais tarde, Getúlio se beneficiou disso. Depois você tem um período bastante difícil que é o final do presidente JK. Ele fez o endividamento e fez a abertura também, não a abertura da economia, mas trouxe o capital estrangeiro para cá. Internacionalizou a produção daqui, não internacionalizou a economia brasileira, e fez Brasília, deu um certo otimismo. E, daí por diante, os anos 60 foram muito difíceis, veio o golpe e foi muito complicado. Em 70, houve crescimento econômico, mas os indicadores sociais não melhoraram tanto. Como houve uma explosão urbana, a administração pública entrou em colapso. Aumentou a desigualdade. Aí, quando chegou nos anos 80, isso ficou mais sensível, inflação, e não sei o quê... Nos anos mais recentes, para mim, o grande marco é a Constituinte, a Constituição, que assegura as liberdades, dá voz ao povo, permite organização, isso é consequência das Diretas já, das greves do passado. Daí por diante, não tem governo que não tenha que olhar para o povo, porque o povo taí, ele pode gritar, pode ir ao tribunal , ele reclama, não faz mais greve. No meu governo, acabou (greve).
Voltou a fazer agora...
FH: Agora um pouquinho, né, por causa da inflação. Então acho que a Constituição desenhou um futuro social-democrático para o Brasil, deu muita liberdade, inventou o SUS, permitiu reforma agrária, e com um problema: ela foi em 88 e o Muro de Berlim caiu em 89. Então ela manteve o corporativismo, com monopólios...
E isso não tem nada a ver com a social-democracia. Tem mais a ver com o PT?
FH: Nada a ver com a social-democracia, mas com o PT. A estrutura sindical getulista... O PT aderiu a isso. O PT na Constituinte era libertário, ele votou contra a estrutura sindical. Eu fui dos poucos que votei junto com o PT, para quebrar o fascismo que tem ainda hoje na CLT, para empresário e para trabalhador. Os dois se juntaram porque os dois se beneficiaram do dinheiro indevido, que é nosso, para manter essas burocracias enormes, sindicais, que não têm mais representatividade efetiva da base. Bom, de qualquer maneira, o segundo passo importante foi a abertura da economia no governo Collor, porque forçou o Brasil a entrar na competição. Fui ministro da Fazenda logo depois, e a pressão que eu sofria dos amigos de São Paulo era enorme para não continuar a abertura.
Foi por causa dessa pressão que o senhor não abriu tanto?
FH: Eu abri pouco, mas não foi por causa dessa pressão. Não dá para mudar tudo de uma vez. E ao mesmo tempo jogamos o BNDES para compensar porque várias indústrias foram abaladas. O BNDES teve papel essencial na reconstrução dessa estrutura, e continua tendo. Então o segundo passo foi esse. O terceiro foi a estabilização da moeda, com tudo o que isso significa. O quarto foi a reforma do Estado, que incluiu as privatizações, as agências reguladoras, transformar o Estado numa peça eficiente. Vou dar um exemplo: o SUS só havia no papel. Foi feito por nós. Hoje, bem ou mal, tem o SUS aí. Na Previdência ficamos canhotos porque fizemos só o fator previdenciário que o Congresso derrubou e o Lula vetou. Houve mais mudanças, menores. Criei o Ministério da Reforma Agrária, o Pronaf, revolucionamos a agricultura... E quinto passo: as políticas sociais, que começam no meu governo e explodem no governo do Lula. Essa é sequência das transformações mais recentes.
O que falta?
FH: Houve certos retrocessos na questão do Estado. Estão aí os aeroportos como prova pura disso. As estradas também não avançaram mais.
O Estado ficou mais forte.
FH: Mais forte para quê? Não está mexendo na infraestrutura. A economia ficou mais forte, e o Estado está fortalecendo uma economia forte, às vezes desnecessariamente, dando dinheiro para fusões, o que é discutível. Mas não houve uma expansão da infraestrutura. Porque ficou no Estado, e o Estado não tem os recursos, às vezes. Eu reitero: não sou privatista, não sou neoliberal, mas tem coisas que o Estado pode e coisas que não pode fazer. No caso dos aeroportos, é gritante que tinha que fazer concessão e não foi feito. Mesmo no caso da energia elétrica, o dinheiro que está indo para Belo Monte é público. Se quiser fazer o trem-bala, não tenho nada contra, mas bota dinheiro da iniciativa privada. Por que o meu, o seu, o nosso? As agências reguladoras perderam força, a Petrobras tem penetração política, então isso é retrocesso.
Mas e de bom?
FH: Primeiro, os programas sociais...
Pela análise do senhor, apesar dos retrocessos, não houve nada ainda que fizesse andar para trás, que comprometesse?
FH: Não. O PT vive dizendo: o PSDB não tem projeto. Como não tem projeto? Vocês (os petistas) estão cumprindo!
Mas o que o PT fez de bom?
FH: A expansão da política social. Eu não faria a politização dela, de (atuar como) novo pai dos pobres, não. Mas a expansão foi positiva. Na educação, acho que não paralisaram. Houve alguns tropeços, mas, no geral, historicamente, a linha está ascendendo, não está caindo.
O que pode atrapalhar essa linha ascendente?
FH: O que pode atrapalhar é o seguinte: A Previdência tem problemas, o sistema tributário também, o mercado de trabalho também... Não houve reforma nenhuma. Trocamos a reforma pelo bem-estar, e não houve um avanço grande de investimentos - agora está começando a ter. O crescimento está se dando mais pelo consumo do que pelo investimento. Isso vai até certo ponto e depois para. É o seguinte: o futuro vai depender de educação, tecnologia e inovação. O Brasil tem hoje uma situação privilegiada porque a China voltou a ter um papel central no mundo e ela precisa de comida e matéria-prima. E o Brasil tem espaço para continuar a plantar e tem boa mineração. Mas isso tem um preço: nossa indústria começa a dar sinais preocupantes, o número de empregos aumentou, mas os empregos são de baixa qualificação. País desenvolvido é país de emprego bom.
Mas está melhorando a qualidade do emprego.
FH: Não, não está. A formalização uma coisa positiva no governo Lula. Mas a propaganda diz "milhões de empregos", quando não é emprego novo. Passa a contar porque foi formalizado, mas já existia. Com essa mudança do mundo, o Brasil não pode dispensar o crescimento industrial. É normal que o serviço cresça bastante, em todas as economias. Mas qual serviço? De qualquer maneira, volta ao tripé: educação, tecnologia, inovação. Por quê? Vamos ter de competir. Temos que escolher: vamos ser bons no quê? Não podemos continuar com a visão autárquica que vem do passado de querer ser bom em tudo. Tem que escolher e fazer as apostas. Creio que o BNDES tem um pouco dessa visão. Estou falando de escolher em que setores um país tem que investir. Pega um país, a Coreia, que esteve muito atrás do Brasil e hoje está à frente. Tem de ter um certo ingrediente de pragmatismo na nossa formação, que não temos. Eu não sou pessimista quanto a nada disso, só estou assinalando que é por aí que temos que caminhar. E acho que essa coisa do governo Lula de que "eu sou tudo, o bom" e o outro é mau, isso atrapalha a convergência nacional.
O senhor está dizendo que o populismo, não só no Brasil mas em qualquer lugar, é um desastre para a convergência?
FH: É um desastre, não permite esse tipo de convergência, e fica então muito mais propaganda do que consenso nacional. E depois que o líder sai, cadê a propaganda?
O senhor considerou as privatizações um dos grandes avanços. Mas que coisa estranha acontece que, em toda eleição, ela vira um espantalho?
FH: Faltou luta do PSDB, faltou reafirmar com força que aquilo foi positivo. E é tão fácil! Nós não nos orgulhamos de a Embraer vender aviões no mundo todo? Temos quantidade de celular que cresce exponencialmente, e todo mundo gosta. A Vale é a segunda maior empresa de minério do mundo, nos orgulhamos disso, mas ao mesmo tempo...
Foi erro na comunicação?
FH: Sim, mas não só. A esquerda brasileira, e eu também, foi criada com a ideia de que se não é estatal não é bom. Uma parte importante do pensamento político brasileiro é assim, e no PSDB também.
Do que o senhor se arrepende nestes 80 anos?
FERNANDO HENRIQUE: Ah, aí você vai passar a tarde toda aqui (risos).
Do que mais se orgulha?
FH: Vou dizer uma coisa que pode parecer clichê. É da minha família. Eu tenho um apoio tão forte, tinha da Ruth e tenho dos meus filhos. Em todos os eventos da minha vida, o que não é fácil, é inacreditável. Meus filhos me ligam incessantemente e vêm aqui, se preocupam. O que me dá possibilidade de viver com independência e vigor é que tenho apoio brutal da minha família e dos amigos de muito tempo. Isso é necessário.
E o arrependimento?
FH: O arrependimento? Olha, se for na política... O resto eu não posso nem falar, porque tenho tantos... (Mas na política) é aquilo que eu disse, é conveniente ter a noção de que não dá para mudar tudo de repente. Acho que forcei demais para mudar a Previdência, e isso me custou muito caro. Não precisava tentar tanto. Nós queríamos endireitar o Brasil todo e de uma vez. Não é assim. Eu podia ter sido mais suave, me desgastaria menos e talvez tivesse conseguido mais.
Como era a rotina na Presidência?
FH: A coisa mais atormentadora é quando chega nove da noite, entra o chefe da Casa Civil com uma pilha de documentos para assinar...
E depois não se pode dizer que assinou sem ler, né?
FH: Mas não lê, né? Porque o que acontece é o seguinte: tudo passa por vários crivos, os dois principais são o advogado-geral da União e o chefe da Casa Civil. Passou pelo ministro, passou pela Casa Civil, pela AGU e depois pela Presidência. O chefe da Casa Civil, quando passa, ele te informa do que se trata. Se for uma coisa mais delicada, você discute. Nesta discussão que está aí hoje (sobre a manutenção do sigilo eterno para documentos de Estado)... Foi no dia 31 de dezembro de 2002, último dia do governo. Porque tem dois canais, ou vem pela Casa Militar ou vem pela Casa Civil. Bem, quando veio esse negócio, eu disse (depois): não é possível que eu tenha assinado isso. Aí chamei o Pedro Parente: vê se é possível que eu tenha assinado isso. Reconstituiu, não passou pela Casa Civil. Foi pela Casa Militar. Sem a assinatura do general Cardoso. Mas eu não sabia. E uma coisa me chama a atenção: nunca nem o Itamaraty nem as Forças Armadas falaram nesse assunto comigo, nunca pressionaram.
Então o senhor assinou sem ver? E quando soube?
FH: Quando saiu no jornal, um ano depois. Como eu assinei um negócio proibindo eternamente? Mas Lula nunca desclassificou. E surpreende que o Collor e o Sarney tenham se posicionado (para manter o sigilo eterno), então deve haver algum problema...
É porque está chegando perto do governo deles.
FH: Mas será?
Não faz mais sentido, mas dizem que a razão é a Guerra do Paraguai e que o Brasil não ficaria muito bem na fita...
FH: Houve outra vez em que assinei também, com parecer e tudo aprovado, uma coisa que deixou a Ruth furiosa, porque restringia o atendimento a aborto. Quando apareceu, você imagina lá em casa! Mas nesse caso tinha pareceres... passou por um canal do Ministério da Saúde. Aí, depois, pedi ao Congresso que rejeitasse, ele rejeitou.
Provavelmente era um período próximo de eleições...
FH: É possível. Então pode acontecer. Mas, que eu me lembro, foram esses dois casos. Agora é eletrônico, né?, mas eu me lembro de que o Hargreaves ia para a casa do Itamar, com pilhas e pilhas, e ele ficava desesperado também. É muito cansativo esse negócio de ser presidente, não sei por que o pessoal quer tanto... (risos)
Por que o senhor quis tanto?
FH: Pois é, por engano. (ri)
Duas vezes, presidente?
FH: Eu sou meio tonto...
O senhor reclamava muito da solidão do poder.
FH: Isso sim. Isso é insanável. Porque não é a solidão de pessoas. É que não adianta ter um monte de gente em volta, e você não pode partilhar. Porque, em geral, quando vem uma discussão para a mesa do presidente, é porque as pessoas não se entenderam antes, tem ministro brigando. Não vem coisa boa para o presidente. Só vem bola dividida. E a função da Casa Civil é arredondar a bola. Mas, quando eles não conseguem, vem para você, e aí você tem que decidir.
O senhor falava que o Palácio é um lugar de muita intriga...
FH: Palácio é um lugar de muita intriga. Eu fui funcionário das Nações Unidas - antes eu era professor -, e lá é uma burocracia pesada, a base de organização daquilo é inglesa, e tudo é hierarquizado, inclusive o número de janelas a que você tem direito na sua sala. Mais janelas, mais poder. Eu nunca fui muito desse tipo de coisa.
E no palácio...
FH: Eu mal conheço o Palácio da Alvorada. Eu conheço a sala onde eu andava, mas o presidente não vai às áreas de trabalho. O presidente anda com um séquito, e não dá. Quando o Lula se elegeu, eu falei com o Gushiken, que foi lá, que esse negócio de palácio é complicado, toma cuidado. Porque, se puser muito ministro no palácio, vai dar briga. Não é o ministro que briga, são as equipes. Quanto menos ministro no palácio, melhor.
O senhor já disse que no Palácio não pode haver dois fortes.
FH: Não pode. Tem que ter um único, porque se não vira briga burocrática, vira uma coisa...
E agora com três mulheres?
FH: Mulher talvez se entenda melhor. Em matéria de gênero, eu não entro. (risos)
Como é conciliar essa solidão povoada com o poder supremo que a função confere? O presidente se sente um pouco rei?
FH: Se você se deixar levar pela sua imaginação, vira rei. Se tiver um senso realista, vê que aquilo é transitório. Porque você mora numa repartição pública, por mais bonito... O Alvorada é lindo, a parte superior dele é isolada, e, no meu tempo, só morávamos eu e a Ruth. Eu nunca tive ajudante de ordem morando lá, ninguém. Só os garçons podiam entrar sem avisar. Mas você desce ali, e é uma repartição pública. Moram lá, entre guardas e funcionários do serviço, de 100 a 150 pessoas. Você vai passear no jardim, olha para trás, tem duas pessoas atrás de você. Então, você não está na sua casa, por mais que seja agradável. Você vai nadar, tem alguém te olhando para não morrer afogado. Ou para te afogar (risos). Agora, eu sempre procurei não mudar meu estilo pessoal de viver. Eu e a Ruth. Então, quando vínhamos para São Paulo, íamos para o nosso apartamento aqui. Sempre estive com os mesmos amigos, e aí não tem jeito. Você não vai ser rei. Você é um igual. Tem algumas restrições que são grandes, você não guia automóvel...
Não abre portas...
FH: Bom, isso eu sempre corria para abrir, mas sempre chegava alguém antes. Por que, quando terminou o governo, eu e Ruth fomos correndo para a Europa? Eu andei de metrô, fiquei num apartamento da dona Maria Sodré. Era bom, mas pequenino. De propósito, para cair na real.
O senhor não teme ser vítima de um conservadorismo moral com essa sua campanha a favor da descriminalização da maconha?
FH: Em qualquer outro país, eu temeria. A nossa sociedade é bastante aberta.
O que o levou a se interessar por esse tema?
FH: Depois que deixei a Presidência, disse que iria me afastar da política partidária. Disse que iria me afastar e procurar atuar no campo da política de participação cívica. Nesse caminho, o Kofi Annan me colocou como assessor dele para fazer um relatório sobre como a sociedade civil poderia ter uma conexão com a ONU. Depois fiz outro relatório sobre a Unctad. Fiquei presidente do Clube de Madri e organizei uma reunião sobre terrorismo e democracia na Espanha. Depois me meti na questão da Aids. Estive com o Mandela na Noruega, na França, e foi a partir daí. A droga faz parte do mundo global. Li um livro de um amigo chamado Moisés Naím (escritor venezuelano) que mostra como houve a globalização do crime. Foi por aí que entrei nessa questão da droga. Não pela coisa local. Guerra às drogas só não resolve. Você tem que mudar de combater só a produção para reduzir o consumo e dar tratamento e educação.
Se um filho adolescente chegar para o senhor e admitir que fuma maconha, o que diz?
FH: Você sabe que isso faz mal. Eu não posso dizer que é pior que o cigarro porque não é. Mas vou dizer que ele é livre para fazer isso, mas questionarei onde ele foi obter a droga, por que ele foi no crime? É melhor regular do que fingir que não existe o problema, porque o seu filho fuma, e ele vai comprar do crime. Agora, se for cocaína, crack, tem que ir para o tratamento.
Isso chegaria ao ponto de se vender livremente a droga?
FH: Não. O álcool não deveria ser vendido abertamente. Não é na Europa, nos Estados Unidos, onde menor de 18 não compra. Maconha tem dois problemas gravíssimos. Um é a intensidade, e o outro é que, para obtê-la, você vai ao crime. Eu não sou favorável à legalização.
O PSDB reagiu com preocupação ao seu engajamento, dizendo que essa não é a posição do partido.
FH: Eu até entendo e acho que essa matéria não está no momento de ser politizada.
Mas o senhor não teme que numa próxima eleição isso vire munição contra o seu partido?
FH: O Tarso Genro era a favor, o Paulo Teixeira é a favor. Não sou a favor das drogas. Sou contra o uso de drogas. As pessoas não viram o filme, têm de ver.
O jogo político favorece a hipocrisia?
FH: É possível que sim. Como você aborda esses temas eleitoralmente? Eles vão ser abordados em forma de chantagem. Já fumou maconha ou não? É a favor do aborto ou contra? Acredita ou não em Deus? Eu nunca disse coisas contrárias ao que penso. Sabe como eu respondi à pergunta se eu acreditava em Deus? Disse que isso não era pergunta que se faça. Religião é questão de foro íntimo. Você tem que perguntar ao candidato a prefeito se ele respeita as religiões e não no que ele acredita. Foi a minha resposta, e disso interpretaram que eu disse que era ateu. Na campanha, qualquer que seja sua resposta, vai ser feito assim. Perguntar essas coisas faz mal à sociedade, porque eles (os candidatos) não vão poder responder, e é só para atrapalhar. Esse tema não deveria ir para a política.
O senhor acha que a mágoa do presidente Lula em relação ao senhor é por ter perdido duas vezes no primeiro turno?
FH: Não sei se ele tem mágoa. Quando estamos juntos, a relação é boa. O Lula tem essa língua solta, e eu também. Acho que o Lula ficou mesquinho, e ele não precisava renegar o que estava seguindo para ter a glória dele. Ele achou que, para ele crescer, tinha que me botar para baixo. Um cresce no ombro do outro e vai ficando mais alto.
Como o senhor vê a postura da presidente Dilma?
FH: Foi diferente. Eu até telefonei para ela para agradecer. Eu fiquei feliz com a carta dela, que me deixou bem satisfeito. Ela reconhece algumas coisas. Meu antecessor, Itamar, embora ele se queixe, não há uma referência minha a ele que não seja elogio. Sem o Itamar, não haveria o Plano Real. Eu acabei de falar do Collor, que fez a abertura. História é História, você não pode borrar a História. (...) Acho que é muito pretensioso você imaginar que os outros não fizeram nada. Se eu dissesse o que o Lula diz, eu seria execrado. O Lula não é (execrado) porque foi trabalhador, pobre, e isso dá a ele uma espécie de imunidade para dizer coisas que não são aceitáveis. Agora, acho que chega.
O senhor nunca voltou aos dois palácios?
FH: O Lula nunca me convidou para tomar um café. Tanto o Itamar quanto o Sarney foram ao Palácio. Fiz de propósito um gesto para o general Geisel, o convidei para almoçar. Fiz isso porque tinha sido o primeiro presidente punido pelo AI-5 e eu queria dizer que acabou aquela época. Não iria esquecer o que aconteceu, mas a época é nova. É uma coisa de civilidade. A Dilma me convidou para ir lá. O Lula me convidou para ir com ele ao enterro do Papa, e eu fui. Acho errado isso (de Lula nunca ter chamado para um café, uma conversa), tanto mais porque eu e o Lula tínhamos relação antiga. Vou dizer uma coisa: quando houve o mensalão e razões óbvias para o impeachment do Lula, eu disse que não achava uma boa. Justifiquei que eles iam colocar as ruas contra nós e, por outro lado, ficaria uma marca indelével muito ruim para o país.
Como o PSDB pode fazer essa aproximação com o povão?
FH: Como temos os governos de São Paulo e Minas? Porque temos o apoio do povão. Essa é uma outra imagem que o PT joga. A diferença não é povão no voto, mas o mecanismo organizado de controle de movimentos sociais, que é o que eles têm. O PT tem o controle dos movimentos sociais. Como todos os sindicatos mamam na mesma teta, que é o dinheiro público, está tudo acalmado.
O período de grande crescimento econômico não facilita essa identificação?
FH: Sem dúvida. A economia está por trás de tudo.
Ao sugerir que não houvesse impeachment de Lula, o senhor não agiu conforme aquele pensamento político brasileiro de ser conciliador sempre?
FH: Não. Eu acreditava que eles iam mobilizar a sociedade, e você não faz impeachment sem o povo. Aí vira golpe, e iam nos acusar de golpismo a vida inteira. Segundo, foi essa consideração mais histórica. Eu apoiei que o PSDB levasse o caso para o tribunal, porque aí poderia haver a nulidade da eleição. Mas seria uma coisa traumática. Não sei se seria bom para a consolidação da democracia.
FONTE: O GLOBO
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