- Valor Econômico
Situação do mercado de trabalho é muito complicada e nível de endividamento é elevado, uma combinação negativa para o principal componente do PIB pelo lado da demanda
O ministro da Economia, Paulo Guedes, ainda sonha com uma recuperação em “V” da economia brasileira, passado o impacto mais forte da pandemia, mas a aposta nessa trajetória exige grandes doses de otimismo. As perspectivas para o investimento são muito negativas, num país em que o combate à pandemia é desorganizado, há uma grave crise política e existe enorme capacidade ociosa. Além disso, o consumo das famílias vai sofrer muito, tendo um cenário extremamente complicado pela frente. O panorama para o mercado de trabalho é preocupante e os consumidores deverão sair ainda mais endividados do quadro atual.
Em resumo, o consumo privado, com peso de dois terços no PIB pelo lado da demanda, não deverá ser o motor da retomada, o que tampouco tende a ocorrer com o investimento. A política fiscal atuará neste ano de modo contracíclico, com expansão de gastos e de crédito dos bancos públicos, atenuando em alguma medida o tombo do PIB, mas a situação difícil das contas públicas é um grande obstáculo para as despesas governamentais sustentarem a atividade.
O setor externo pode trazer algumas boas notícias, com as exportações de produtos agrícolas em alta e o efeito do câmbio desvalorizado. As vendas externas, porém, têm um peso relativamente pequeno no PIB.
Na sexta-feira, ao comentar as possíveis trajetórias para a economia brasileira, Guedes disse que ainda prefere “trabalhar com o ‘V’”: Segundo ele, “pode ser um ‘V’ meio torto, caiu rápido e vai subir um pouco mais devagar, mas ainda é um ‘V’”. Até mesmo essa retomada mais suave, porém, parece hoje pouco factível.
No primeiro trimestre, o PIB recuou 1,5% em relação ao trimestre anterior, puxado pela queda de 2% do consumo das famílias. As medidas de isolamento social começaram a vigorar apenas a partir de meados de março, e mesmo assim o impacto foi forte.
No segundo trimestre, o efeito das iniciativas de confinamento será obviamente muito mais intenso, especialmente nos meses de abril e maio. As previsões apontam para uma retração do PIB no segundo trimestre na casa de 10% ou mais na comparação com o trimestre anterior.
Além disso, os números do mercado de trabalho mostram uma situação especialmente preocupante. De fevereiro a abril, houve perda de quase 5 milhões de empregos na comparação com os três meses encerrados em janeiro. A taxa de desemprego nos três meses até abril ficou em 12,6%, e o número só não foi muito maior porque muitos trabalhadores deixaram de procurar ou não conseguiram buscar emprego, devido ao efeito do distanciamento social. Se a população economicamente ativa (PEA, quem está ocupado ou em busca de ocupação) tivesse se mantido no nível de fevereiro, a taxa de desemprego seria de 15,9%, como dizem os economistas do Safra.
Os analistas do banco observam que, na série com ajuste sazonal, a desocupação subiu de 11,6% nos três meses até março para 12% nos três meses até abril, com recuo de 3,4% da população ocupada.
“Analisando esse movimento por tipo de ocupação, observamos uma forte queda nos empregos sem carteira assinada, mas também vemos retração no emprego com carteira. As demais ocupações, que incluem trabalhadores domésticos, também foram severamente afetadas. Por outro lado, o emprego no setor público apresentou elevação pelo segundo mês consecutivo”, afirma o relatório do Safra.
O resultado da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua indica que os rendimentos nominais se elevaram, mas o aumento se deveu “principalmente ao fato de que boa parte das pessoas que estão entrando no mercado de trabalho ou que continuam estáveis em seu emprego possuem capacidade de fazer ‘home office’ e, logo, trabalham em empregos mais qualificados e melhor remunerados”, notam os economistas do banco. Desse modo, “o salário médio se elevou principalmente devido a um aumento na desigualdade do mercado de trabalho”, dizem eles, acrescentando que a massa salarial teve forte contração, devido à queda do nível de ocupação. “O cenário que acabamos de descrever ilustra o forte impacto que a pandemia terá sobre o PIB no segundo trimestre de 2020”, resume o Safra. “Entretanto, mesmo após o final da quarentena nas principais cidades, o mercado de trabalho deve permanecer enfraquecido por alguns meses, com impacto direto sobre o consumo.”
Para completar, há 8,2 milhões de trabalhadores que tiveram acordos de suspensão do contrato de trabalho ou de redução de salário e de jornada. Esses empregos por ora foram preservados, mas com queda expressiva de rendimento em muitos casos.
Uma medida que ajuda a contrabalançar em parte a perda de renda é o auxílio emergencial de R$ 600. O benefício deve ser estendido por mais algum tempo, mas possivelmente com um valor mais baixo, dado o custo elevado. Mesmo se for adotado um programa permanente de transferência de renda mais ambicioso, o quadro para o consumo deverá continuar pouco animador.
O cenário para o endividamento também não é favorável. No fim do primeiro trimestre, as dívidas das famílias correspondiam a 45,9% da renda acumulada em 12 meses, o nível mais alto da série iniciada em 2005, de acordo com números do Banco Central (BC). Como efeito da recessão recente, houve redução do nível de endividamento de abril de 2015 até dezembro de 2017, mas as famílias haviam começado a tomar novos empréstimos e financiamentos, num quadro de retomada da atividade, ainda que vagarosa. Com a perspectiva de juros baixos por um longo tempo e de melhora da confiança, esse processo poderia ser sustentável. A crise causada pela covid-19, contudo, mina esse processo, pegando os consumidores com um endividamento já elevado, que deve aumentar, e o mercado de trabalho em situação adversa, uma combinação obviamente desfavorável para o consumo.
Por fim, o combate frouxo à pandemia e os seguidos confrontos políticos causados pelo presidente Jair Bolsonaro afetam o consumo. Se o efeito mais evidente desse cenário de incerteza se dá sobre o investimento, um ambiente de indefinição como o atual também contribui para tornar o consumidor mais cauteloso. O país, desse modo, deve ter um ano marcado por queda recorde do PIB - talvez de 8% - e uma recuperação vagarosa.
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