segunda-feira, 1 de junho de 2020

O que a mídia pensa - Editoriais

• É urgente a união pela defesa da democracia – Editorial | Valor Econômico

O momento exige prudência e pleno respeito ao Estado democrático de direito

Semana após semana, sucessivos indicadores traduzem em números a pavorosa situação provocada pela pandemia de covid-19 no país. O registro de mortes causadas pelo novo coronavírus beira os 30 mil, a pobreza aumenta e milhões de brasileiros aguardam que as medidas adotadas pelo governo tenham efeito. Algumas das principais autoridades do país, contudo, parecem se esforçar para que uma crise institucional se instale e deteriore um cenário que já é muito preocupante.

O momento exige prudência e pleno respeito ao Estado democrático de direito. A História não perdoa os homens públicos que fogem de suas responsabilidades em momentos de crise. E é implacável com aqueles que, em nome de projetos pessoais de poder, contribuem para a falência da democracia.

O ideal seria que um primeiro passo em direção à pacificação institucional fosse dado pelo próprio presidente Jair Bolsonaro. Infelizmente, isso parece estar longe de acontecer. Depois de entrar em choque com o Congresso Nacional e alguns governadores, Bolsonaro agora entende que está sendo indevidamente tolhido pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Acredita que algumas decisões dos ministros da Suprema Corte estariam usurpando seus poderes, avançando sobre atribuições do chefe do Poder Executivo e prejudicando seus aliados.

Sua lista de queixas é grande e começa com a decisão do ministro Alexandre de Moraes, do STF, que impediu a nomeação de Alexandre Ramagem para o comando da Polícia Federal. A decisão foi baseada nas denúncias do ex-ministro da Justiça e Segurança Pública Sergio Moro, segundo quem o presidente da República pretendia interferir na PF e ter acesso privilegiado a relatórios de inteligência. O governo argumenta que Ramagem, hoje diretor-geral da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), teria a qualificação exigida para assumir a função e nenhuma mácula em seu currículo.

Outra decisão que gerou grande incômodo no Executivo veio do ministro Luís Roberto Barroso, que autorizou a permanência de diplomatas venezuelanos no Brasil enquanto durar o estado de calamidade pública e emergência sanitária reconhecido pelo Parlamento. A retirada dos diplomatas havia sido acordada entre os dois países e o governo brasileiro cumpriu a sua parte. Para Barroso, porém, a medida não é urgente e rompe o isolamento social recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e entidades médicas. Colocaria, portanto, os diplomatas venezuelanos em risco.

Também desagradou ao Palácio do Planalto a consulta feita pelo ministro Celso de Mello à Procuradoria-Geral da República sobre um pedido de perícia no telefone celular de Bolsonaro, mas o mais recente ponto de atrito entre o Executivo e o Judiciário é o inquérito das “fake news”. Também sob responsabilidade do ministro Alexandre de Moraes, o processo alcançou aliados do presidente e levou Bolsonaro a reagir pregando que ordens “absurdas”, sob o seu ponto de vista, não deveriam ser mais cumpridas.

Este é o cenário institucional atual de um país que deixou em segundo plano o combate ao coronavírus e os graves efeitos socioeconômicos decorrentes da pandemia.

As consequências da crise estão escancaradas no noticiário. Na semana passada, por exemplo, o Ministério da Economia finalmente divulgou os dados atualizados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged). O Brasil perdeu 860,5 mil postos de trabalho formal em abril. Foi o pior resultado da série histórica do Caged, iniciada em 1992. Somados os números de março, mês em que começaram as medidas de isolamento social, a crise já provocou o fechamento de 1,1 milhão de vagas com carteira assinada.

O Valor revelou, também, que a pandemia já está afetando o número de abertura de empresas. Para o secretário especial de Desburocratização do Ministério da Economia, Paulo Uebel, ainda é prematuro fazer prognóstico para o ano sobre se o número de empresas fechadas será superior ao de abertura devido aos efeitos do isolamento social e da recessão econômica. No fim de março, foram contabilizadas 18,287 milhões de empresas ativas no país.

O que certo, no entanto, é que uma maior união entre Executivo, Legislativo e Judiciário mostra-se urgente. Ela é essencial para o sucesso dos esforços de contenção da pandemia e de reconstrução da economia.

• A neutralidade da rede em perigo – Editorial | O Estado de S. Paulo

O melhor a fazer neste momento é combater as fake news por meio da identificação dos responsáveis por sua propagação

O tema das fake news está na ordem do dia no Brasil e nos Estados Unidos não é de hoje. Ganhou especial relevância nos últimos meses porque ambos os países realizarão eleições neste ano. Mas não preocupa só por isso. Primeiro, em meio a uma emergência sanitária como a pandemia de covid-19 notícias falsas podem matar. Segundo, tanto o presidente Jair Bolsonaro como o presidente Donald Trump adotaram as fake news, as distorções da verdade factual e os ataques à imprensa profissional como estratégias de governo, não apenas táticas para vencer eleições.

Aqui no Brasil, recente operação da Polícia Federal (PF), autorizada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), começou a descortinar uma organização criminosa que estaria a serviço do governo de Jair Bolsonaro para produzir e publicar mentiras, distorções, ofensas e ameaças contra pessoas e instituições republicanas por meio das redes sociais e aplicativos de comunicação como o WhatsApp. Nos Estados Unidos, vê-se um acalorado debate sobre a responsabilidade das chamadas Big Techs – Google, Twitter e Facebook, principalmente – de realizar a aferição da veracidade de tudo o que é publicado em suas plataformas. Há poucos dias, duas publicações do presidente Donald Trump no Twitter foram classificadas como duvidosas pela empresa.

Quem as lia era convidado a visitar fontes confiáveis de informação que refutavam aquilo que o presidente americano havia escrito. Como reação, Trump assinou uma ordem executiva para acabar com o que chamou de “viés político” daquelas empresas, autorizando as agências federais a controlar o que é publicado nas redes sociais e a responsabilizar as empresas, o que é temerário. “Estamos aqui hoje para defender a liberdade de expressão de um de seus maiores perigos”, disse Trump ao assinar o decreto. A pretexto de defender a liberdade de expressão e acabar com o “viés político” nas redes sociais, o presidente americano pretende, na verdade, o exato oposto: controlar politicamente o conteúdo digital e, assim, cercear a liberdade.

Subjacente à discussão acerca da liberdade de expressão, que não por acaso também foi indevidamente invocada pelos bolsonaristas apanhados pela operação da PF, há uma questão que deve preocupar todos tanto quanto preocupa o resguardo da garantia constitucional: a neutralidade da rede. É isto o que, no fundo, está em jogo no debate corrente.

A neutralidade da rede é garantida no Brasil pela Lei 12.965/2014 – o Marco Civil da Internet, diploma legal elogiado internacionalmente –, que em seu inciso IV do artigo 3.º estabelece que a “preservação e garantia da neutralidade da rede” é um dos princípios que disciplinam a internet no País. Grosso modo, a garantia da neutralidade da rede equivale, no ambiente digital, às garantias individuais resguardadas pela Constituição, razão pela qual deve ser mantida intocada.

Dois projetos que tramitam no Congresso, em que pesem as boas intenções que os inspiraram, têm potencial para comprometer a neutralidade da rede. De autoria dos deputados Felipe Rigoni (PSB-ES) e Tábata Amaral (PDT-SP), na Câmara dos Deputados, e do senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), no Senado, esses projetos visam à responsabilização das empresas de tecnologia pelo conteúdo que os usuários publicam nas redes sociais. É inegável que a disseminação de notícias falsas, injúrias e aleivosias é um mal para a vida pessoal dos indivíduos por elas afetados e um mal ainda maior para o viço democrático do País. No entanto, o melhor a fazer neste momento é combater as fake news por meio da identificação dos responsáveis por sua propagação, bem como daqueles que os financiam, levando-os a responder por seus crimes na Justiça. Exatamente como estão fazendo o STF e a Polícia Federal.

A eventual leniência das empresas de tecnologia para conter a disseminação de fake news e ofensas pode e deve ser amplamente discutida. O que é perigoso – e contraproducente – é simplificar uma questão que é complexa, simplesmente levando-as à Justiça. O resultado não será outro: empresas mais cautelosas e, portanto, menos propensas a deixar livre o debate que ocorre nas redes sociais que administram.

• O presidente, o vírus e o balanço – Editorial | O Estado de S. Paulo

Insegurança gerada pelo presidente assusta investidores e prejudica o País

A crise permanente criada pelo presidente Jair Bolsonaro é a maior ameaça à segurança externa da economia brasileira. Contas externas sustentáveis dependem, no caso do Brasil, das exportações do agronegócio e da confiança do investidor estrangeiro. As vendas de alimentos e matérias-primas de origem agropecuária continuam robustas, apesar das agressões verbais a alguns dos compradores mais importantes, incluída a China. Além disso, a crise ocasionada pela pandemia tem contribuído para a redução dos gastos externos. As despesas líquidas com viagens, por exemplo, foram em abril 91,2% menores que as de um ano antes e ficaram em US$ 90 milhões. Isso contribuiu de forma importante para o déficit na conta de serviços bater em US$ 1,2 bilhão, com recuo de 63,4% em relação ao valor de abril de 2019, segundo o Banco Central.

Principal pilar das transações correntes, o comércio de bens foi novamente superavitário em abril, com saldo de US$ 6,44 bilhões, garantido como sempre pelo agronegócio. As exportações totais, de US$ 18,36 bilhões, foram 4,89% inferiores às de abril de 2019. Mas a retração do mercado, com milhões de famílias em casa e negócios muito reduzidos, derrubou as importações para um valor 15,90% menor que o de um ano antes.

Somados o comércio superavitário de bens e as contas deficitárias de serviços e de rendas, chega-se a um superávit de US$ 3,84 bilhões nas transações correntes. Em março o resultado já havia sido positivo. No ano, porém, o saldo até abril foi um déficit de US$ 11,88 bilhões, 29,94% inferior ao de janeiro-abril de 2019, principalmente por causa da redução de gastos forçada pelo coronavírus. Em 12 meses, o buraco das transações correntes ficou em US$ 44,37 bilhões. No período até março ainda estava em US$ 50,12 bilhões. O rombo acumulado em 12 meses foi financiado, ainda com sobra, por US$ 73,21 bilhões de investimento direto líquido, equivalente a 4,31% do Produto Interno Bruto (PIB) estimado para o período.

Esse investimento, a menos volátil e mais produtiva forma de aplicação de capital estrangeiro, tem declinado desde o trimestre final de 2019. O total acumulado neste ano, até abril, chegou a US$ 18,04 bilhões e ficou 22,28% abaixo do contabilizado nos primeiros quatro meses de 2019. A redução é em parte atribuível à crise internacional. A economia global continua fortemente retraída, mesmo com a retomada inicial das atividades na China.

Em tempo de pouca atividade e muita incerteza, é normal o desvio de capitais para aplicações consideradas seguras, embora pouco rentáveis, como os títulos do Tesouro americano ou mesmo papéis com rendimento negativo, como têm sido os alemães. Quando isso ocorre, as economias emergentes são as maiores perdedoras de recursos. Mas o caso do Brasil tem sido especial.

O País tem sido um dos mais afetados pela mudança nos fluxos de capitais – de investimento direto e principalmente de aplicações tipicamente especulativas. Em abril saíram US$ 7,3 bilhões de investimentos em carteiras de papéis – US$ 4,9 bilhões de títulos de dívidas e US$ 2,4 bilhões de ações e fundos de investimento. A insegurança é bem conhecida. Depois de cerca de 40 reuniões com investidores institucionais da Europa e dos Estados Unidos, nas duas últimas semanas, o economista David Beker, do Bank of America, falou ao Estadão/Broadcast sobre as preocupações dos estrangeiros. Segundo ele, há uma percepção de três crises simultâneas: de saúde, política e fiscal – esta última ligada à incerteza quanto à evolução da política econômica no Brasil. O quadro, acrescentou, era ruim antes da pandemia, por causa do baixo crescimento, e agora piorou. Ele poderia, sem erro, ter assinalado um ponto fundamental: as três crises convergem para a figura do presidente, obcecado por suas preocupações pessoais. Para isso tem chamado a atenção a imprensa internacional. Essa imprensa, segundo o presidente, é formada por esquerdistas. Curiosamente, por meio dela se informam os investidores do mundo rico. Serão esquerdistas disfarçados de bilionários?


• A fraqueza de Bolsonaro – Editorial | O Estado de S. Paulo

Com a MP 971/20, o presidente da República deu aumento a uma elite do funcionalismo

O presidente Jair Bolsonaro diz-se preocupado com a economia e com quem precisa trabalhar para “levar o leite dos seus filhos, o arroz e o feijão para sua casa”. Também tem dito que não será possível continuar socorrendo Estados e municípios, numa espécie de preocupação repentina com a saúde das finanças públicas. Tudo isso é o que o presidente diz. O que ele faz é completamente diferente. Em plena pandemia, com uma gravíssima retração da economia, do emprego e da renda das famílias, Jair Bolsonaro valeu-se de sua caneta presidencial para assinar medida provisória (MP) concedendo aumento a policiais civis e militares do Distrito Federal (DF). É um acinte, uma completa imoralidade com a população brasileira.Com um custo estimado de R$ 505 milhões ao ano,

a MP 971/20 deu aumento de 8% a 25% a policiais do DF. Antes do reajuste, os vencimentos dos agentes da Polícia Civil variavam entre R$ 8.698,78 e R$ 13.751,51. Com o aumento, passarão a ser de R$ 9.394,68 a R$ 14.851,63. Já os delegados ganhavam, antes do aumento, entre R$ 16.830,85 e R$ 22.805,00. Com a benesse presidencial, ganharão entre R$ 18.177,32 e R$ 24.629,40. O reajuste também abrange os órgãos de segurança pública dos ex-territórios federais de Rondônia, Roraima e Amapá, abrangendo todos os agentes da ativa ou da reserva que ingressaram na carreira quando esses Estados eram territórios.

Com a MP 971/20, o presidente Jair Bolsonaro deu aumento de salário a uma elite do funcionalismo público. O salário mínimo vigente de um trabalhador é de R$ 1.045. Vale lembrar também que, em razão das circunstâncias excepcionais causadas pela covid-19, foram aprovadas regras emergenciais permitindo a redução salarial e até mesmo a suspensão temporária do contrato de trabalho de empregados da iniciativa privada, como forma de viabilizar a manutenção dos empregos. Nem se fale da situação dos trabalhadores informais. Em muitos casos, a pandemia representou o desaparecimento da renda familiar, com muitos lares dependendo exclusivamente do auxílio de R$ 600 aprovado pelo Congresso. No entanto, nada disso parece preocupar o presidente Jair Bolsonaro. Usou seu poder de editar medida provisória para aumentar salários que, em alguns casos, ultrapassam a faixa dos R$ 20 mil.

A situação social e econômica do País é tão drástica que o Congresso aprovou, no dia 6 de maio, lei complementar (LC) proibindo reajuste do salário do funcionalismo por 18 meses. No entanto, o presidente Jair Bolsonaro adiou propositadamente a sanção da Lei Complementar 173/20, dando margem para que categorias do funcionalismo público estadual obtivessem nesse período aumentos salariais. A desafiar toda a racionalidade, o presidente da República valeu-se de sua demora na sanção da LC 173/20 para dar aumento salarial aos policiais do DF.

Não bastasse o reajuste em plena pandemia, a MP 971/20 estabelece efeitos retroativos. “Esta Medida Provisória entra em vigor na data de sua publicação com produção de efeitos financeiros a partir de 1.º de janeiro de 2020”, diz o art. 6.º. Enquanto a imensa maioria dos brasileiros vê sua renda definhar, policiais civis e militares do DF receberão, além do aumento salarial, o refrigério de algumas parcelas adicionais “atrasadas”.

“Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional”, diz o art. 62 da Constituição. No caso da MP 971/20, a relevância e a urgência situavam-se precisamente em sentido contrário ao disposto pelo presidente Jair Bolsonaro. É urgente e da máxima relevância que nenhum funcionário público tenha aumento de salário em plena pandemia.

Amiúde, o presidente Jair Bolsonaro queixa-se de um suposto tolhimento de seus poderes presidenciais. Na verdade, é o próprio Bolsonaro que se dispõe a ser fraco, valendo-se de seu poder de editar medida provisória para se tornar submisso a nefastas pressões corporativistas, justamente no momento em que deveria, por razões óbvias, negar esse pedido.

• Os sinais da desconfiança do capital externo – Editorial | O Globo

Em abril, a soma de investimentos diretos foi de US$ 234 milhões, o menor valor para o mês em 25 anos

Sem rumo, o governo virou uma usina de instabilidades. Desperdiça um precioso tempo com o negacionismo da Ciência, em plena pandemia, e em discussões políticas estéreis, que só atrapalham a tomada de decisões vitais à recuperação da economia no segundo semestre.

É provável que não tenha percebido, mas o país já começou a pagar um preço político elevado por sua insistência em não discutir soluções e só multiplicar problemas.

Os investidores externos começaram a retirar o Brasil dos seus radares. Em abril, informa o Banco Central, a soma de investimentos diretos foi de US$ 234 milhões. Nesse mesmo mês, no ano passado, o fluxo havia sido de US$ 5,1 bilhões. É o menor valor de capital estrangeiro para o mês de abril em um quarto de século — desde 1995, quando ficou em US$ 168 milhões.

No primeiro quadrimestre, o fluxo chegou a US$ 18 bilhões, pouco menos que os US$ 23,3 bilhões registrados entre janeiro e abril do ano passado. Tomando-se o período de 12 meses encerrados em março, o estoque de investimentos externos ficou em US$ 73,2 bilhões, o equivalente a 4,31% do Produto Interno Bruto.

A pandemia, talvez, possa justificar o resultado de abril na quase totalidade. A despeito da postura negacionista do governo — a “gripezinha”, como definiu o presidente —, agravou as condições recessivas da economia brasileira e sinaliza um drama, se não houver rapidez, abrangência e eficácia no socorro federal às pessoas, a empresas, estados e municípios.

No quadro de abril percebe-se, também, um forte componente político: a desconfiança dos investidores em relação às chances de um governo estável, capaz e confiável na gerência da crise que se desenha no horizonte.

Diferente das aplicações em Bolsa, o investimento estrangeiro direto representa aporte de pessoas físicas ou jurídicas em empresas estabelecidas no país. É complementar à poupança nacional. Resulta de planejamento prévio, análise de perspectivas de mercado e de decisão tomada com base na avaliação de fatores de risco político, de segurança jurídica e de rigor na política ambiental. Nesses quesitos, hoje o Brasil só tem a oferecer incertezas.

O governo Jair Bolsonaro se transformou numa usina de crises, em permanente conflito com o Legislativo e o Judiciário. Seu melhor retrato está no vídeo da reunião ministerial de 22 de abril, onde se vê o presidente em autoconfissão: “O nosso barco tá indo, mas não sabemos ainda (...) pra onde tá indo nosso barco, pode tá indo em direção a um iceberg.”

Se quiser, Bolsonaro ainda tem tempo para recuar e reconquistar a confiança, dentro e fora do país. Mas vai precisar mudar rápido, com eficiência na ação e sob as premissas do respeito às instituições e da plena submissão à ordem constitucional.

• Radicalismo antiambiental estimula lobby contra o acordo Mercosul-EU – Editorial | O Globo

Política de Bolsonaro se torna pretexto para programas protecionistas de cartéis europeus

O Parlamento Europeu produziu uma análise sobre os riscos ambiental, econômico e comercial do bloco caso venha a ser ratificado o acordo de livre comércio com o Mercosul.

O informe “Brasil e a Selva Amazônica”, com referências laterais ao Chaco argentino-boliviano, questiona a política ambiental do governo Jair Bolsonaro e a falta de vigor no monitoramento privado de exploração racional da floresta, mantido por Unilever, Cargill, McDonald’s e Carrefour, entre outras empresas.

O relatório merece ser criticado em aspectos como o da avaliação conceitual sobre soberania e interesse comum da Humanidade. Mas isso não é essencialmente relevante, até porque não há como questionar direitos brasileiros sobre fronteiras estabelecidas há mais de um século e de forma pacífica, algo que a Europa até hoje não conseguiu.

Importa, sim, e muito mais, a mensagem política do documento ao tratar como vinculantes instrumentos como o Acordo de Paris e a Convenção da ONU sobre o Clima. Tem-se aí a colisão frontal com a política ambiental e a diplomacia sob Bolsonaro.

Há uma reafirmação do argumento que estimula líderes regionais como Bernd Lange, presidente do comitê de Comércio, para insistir na não-ratificação do acordo com o Mercosul. A crítica ambiental ao Brasil se torna o motor de um lobby por mais subsídios no âmbito da nova Política Agrícola Comum (2021 a 2027).

Em síntese, o radicalismo antiambientalista do governo Bolsonaro está se tornando pretexto de cartéis europeus de alimentos para um programa protecionista, de substituição de importações de proteínas hoje adquiridas no Brasil e na Argentina. Aproveita-se o consenso crítico sobre a crescente devastação da Amazônia, estimulado pela insensatez governamental, cujos porta-vozes são os ministros Ricardo Salles, do Meio Ambiente, e Ernesto Araújo, das Relações Exteriores.

Haveria margem de negociação no acordo Mercosul-UE, dado o interesse da chanceler alemã Angela Merkel. A dificuldade está na insistência do governo brasileiro em queimar pontes para o diálogo sobre a Amazônia, como se pode ver nas recentes críticas pessoais de Bolsonaro a Merkel.

A psicopatia da guerra a todos só aumenta temores das empresas brasileiras de agronegócio sobre eventual taxação das exportações à Europa. Prova disso está no fracasso do ministro Salles e do secretário Nabhan Garcia, da Agricultura, em articular um manifesto doméstico de apoio à política ambiental. Grandes exportadores preferiram o silêncio.

• Sem justiça, sem paz – Editorial | Folha de S. Paulo

Protesto contra truculência policial nos EUA levanta questões válidas no Brasil

As manifestações que eclodem nos EUA, motivadas pelo assassinato do cidadão negro George Floyd por um policial branco, na cidade de Minneapolis, parecem transcender, em sua extensão e em algumas características, os contornos de protestos anteriores contra o racismo naquele país.

A brutalidade física e simbólica da cena na qual o agente Derek Chauvin sufoca com o joelho, por 9 minutos, uma pessoa que estava sob controle e dizia não ter condições de respirar despertou revolta entre americanos de todas as colorações raciais —e catalisou um sentimento latente de exaustão e descontentamento no país.

A imediata ocupação das ruas por parte de manifestantes sem uma coordenação centralizada discernível fez lembrar os movimentos que irromperam no Chile e em outros países da região em 2019.

O slogan “De quem é a rua? A rua é nossa”, repetido nos Estados Unidos, revela uma índole até certo ponto análoga a de seus equivalentes latino-americanos.

A covardia monstruosa do policial e a desproporção da força por ele utilizada talvez tenham encenado também o drama das desigualdades presentes em uma sociedade que, opulenta em sua economia, vem se tornando crescentemente iníqua nas últimas décadas.

Como se tornou comum em protestos contemporâneos, o recurso a atos violentos, que não raro descambam para o vandalismo condenável e politicamente ineficaz, se fez presente nas demonstrações, em contraste com a linha pacifista consagrada por Martin Luther King, o campeão da luta pelos direitos civis e de negros.

Os tempos são outros todavia, e é inegável que, desde aquelas conquistas basilares da década de 1960, a violência policial contra a população negra —e também latina, cumpre lembrar— jamais cessou.

Quanto a esse aspecto, reabre-se nos EUA o debate acerca dos mecanismos legais de institucionalização de tal truculência —a doutrina da “imunidade qualificada”, há anos sistematizada em decisões da Suprema Corte, que torna extremamente difícil levar a termo tentativas de condenar judicialmente agentes das polícias.

Trata-se da versão norte-americana para um tipo de proteção aos excessos que no Brasil ganhou o nome de “excludente de ilicitude”, dispositivo proposto sem sucesso em pacote legislativo do ex-ministro da Justiça Sergio Moro.

O fato de que essa assim chamada “autorização para matar” tenha sido rejeitada pelo Congresso não deixa, infelizmente, o Brasil em melhor situação. Aqui, com leis ou sem leis, banalizou-se, em proporções dramáticas, a rotina da brutalidade policial impune sobre as populações pobres e negras.

Os protestos da sociedade, embora existam, são pontuais e minoritários.

Nesse contexto, seria sem dúvida valioso para os dois países refletirem sobre um outro slogan adotado pelos manifestantes americanos: “Sem justiça, não há paz” (“No justice, no peace”).

• Polícia letal – Editorial | Folha de S. Paulo

Só descontrole e impunidade explicam mais mortes por ação do Estado na pandemia

Se ainda pairava dúvida sobre o caráter endêmico da violência policial no Brasil, não deveria pairar mais. Em meio à pandemia, São Paulo e Rio de Janeiro quebram recordes históricos de mortes por policiais.

Já elevada para qualquer parâmetro que não seja o da barbárie, a maior letalidade policial no início deste ano verificada nos dois estados contrasta, ainda mais, com a queda de outros crimes.

Entre janeiro e março deste ano, a Polícia Militar paulista matou 255 pessoas em supostas situações de confronto, um aumento de 23% em relação ao mesmo período do ano passado, segundo dados da Secretaria da Segurança Pública.

Tendência similar, embora mais letal, se vê no Rio. Dados do Instituto de Segurança Pública (ISP) registraram um aumento de 43% nas mortes por policiais fluminenses no mês de abril, com 177 vítimas.

Cumpre lembrar que são elevações em índices já, há muito tempo, inaceitáveis. A título de comparação, 1.011 pessoas foram mortas pela polícia dos Estados Unidos no ano passado, segundo levantamento do jornal Washington Post.

Guardadas as devidas proporções, apenas no Rio o número de mortos do mesmo modo em 2019 foi de 1.810, recorde desde 1998.

Por trás destes números jazem vidas perdidas, em grande parte de jovens negros, contra os quais brutalidade é a regra, não a exceção. Contaram-se mais de 70 marcas de projéteis na casa onde João Pedro Matos Pinto, 14, foi morto pelas costas em São Gonçalo, região metropolitana do Rio.

A alta da letalidade policial caminha na contramão da queda dos índices de criminalidade ante do mesmo período do ano passado, antes da pandemia.

No RJ, os homicídios dolosos tiveram redução de 14% em abril, e roubos de rua despencaram 64%. Embora o número de assassinatos tenha tido leve alta em São Paulo (3,4%), os crimes patrimoniais caíram, em média, pela metade.

Injustificada sob qualquer parâmetro civilizado, a letalidade das forças de segurança no Brasil carece ainda mais de razões em um cenário de ruas vazias. Para explica-la, resta apenas a combinação de descontrole com impunidade.

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