O Estado de S. Paulo
É razoável que o eleitor se sinta indeciso.
Os polos muitas vezes são mais semelhantes que diferentes e não trazem
programas com intenções pedagógicas
Sente-se no ar um desejo de mudança. Tão
forte que é como se pudéssemos apalpá-lo. Como está não pode ficar, ouve-se por
toda parte. A democracia precisa ser defendida contra os arreganhos
autoritários. A inflação come os bolsos da população, afeta os mais pobres de
maneira vil. Os sintomas de uma crise aguda, múltipla, latejam sem cessar.
Os democratas se mobilizam, lançam cartas e
manifestos que vocalizam a insatisfação e a disposição de luta. Atores
posicionados em campos distintos se reúnem para defender a Constituição, as
regras eleitorais, as urnas eletrônicas. Alerta-se para o risco que correremos
se a mudança tardar, se o mau governo atual prolongar sua existência, com tudo
o que exibiu nos últimos quatro anos: o desprezo pela política democrática, a
falta de empatia, o descalabro administrativo, a grosseria, a ausência de
compostura e de respeito presidencial ao cargo.
O desejo de mudança impregna o ar, mas não
necessariamente irá vencer nas eleições de outubro próximo.
Antes de tudo, porque mudar é sempre difícil. Exige que personagens reconheçam erros e incompetências. Passa por deslocamentos (de pessoas, de ideias, de hábitos) que custam a se completar. Não é só uma troca de roupas, ou de governantes.
Mesmo que vençam os candidatos mais
democráticos, não há consensos fortes sobre para onde o Brasil deve caminhar.
Ninguém explica que país é este e como fazê-lo mudar de rota. Sabe-se que é
preciso acabar com a fome, a miséria, as desigualdades, recuperar a economia,
melhorar a educação e a segurança pública, reformar o sistema político para que
produza mais governança. Mas tudo isso depende de uma logística política que
não foi, até agora, explicitada. O pouco que temos tido de oferta programática
(Ciro Gomes, por exemplo) não é acompanhado de uma ideia de “bloco histórico”,
ou seja, de uma composição de forças com coragem e disposição para mudar a face
da sociedade. Fica-se mais na periferia da agenda reformista do que em seu
centro vital.
O desejo de mudança é diversificado e
plural. Tem razões distintas e não se encarna em um único ponto do espectro
político. Há muitos trânsfugas nos pontos mais fortes, Lula e Bolsonaro. Ambos
parecem garantidos no segundo turno, mas ainda batalham para reter seus
simpatizantes. Há um miolo que gostaria de achar uma saída para que se rompa
essa polarização. Tampouco esse miolo está unido em torno de um só nome. Além
da concorrência e da falta de entendimentos internos, a “terceira via” – o
centro democrático – precisa enfrentar os apelos para que se resolva a eleição
no primeiro turno, ou seja, para que os votos sejam depositados desde logo no
candidato com melhores condições de derrotar o autoritarismo.
Esses apelos têm algum sentido, mas não
consideram o quadro todo. E se o centro democrático puder sobrepujar o
extremismo e chegar ao segundo turno? Seus candidatos não poderão contribuir
para desgastar as posições autoritárias? O petismo mais encarniçado não se põe
nenhuma dessas perguntas, preferindo estigmatizar a “terceira via”. O
bolsonarismo treme só de pensar nelas.
Eleições em dois turnos são um artifício
para contornar escolhas plebiscitárias. Para dar aos eleitores um leque de
opções que reflita a diversidade de pontos de vista que há na sociedade. A
dinâmica é conhecida: você vota com o coração no primeiro turno e com a razão
no segundo. No primeiro turno, os candidatos trabalham para se autofortalecer.
No segundo, negociam para fortalecer a melhor saída para o País. É um sistema
inteligente, pensado para expressar a heterogeneidade social, reforçar a
representatividade do eleito e aumentar suas chances de fazer um bom governo.
Com uma polarização em plena velocidade, a
lógica dos dois turnos tem dificuldades para prevalecer. Não é o eleitorado
todo que a compreende. Alguns não gostam dela. E há os afoitos, que preferem
que tudo se resolva no primeiro turno, de um jeito ou de outro. Desejo de mudança,
medo, ansiedade, insegurança e incerteza se acomodam no eleitorado, deixando-o
indeciso.
Há uma cláusula aceita pelos analistas
políticos que acompanham processos eleitorais mais recentes, no mundo todo:
muitos eleitores fazem suas escolhas nos últimos dias das campanhas. Trancam
seu voto numa caixinha de segredos, de modo a entender melhor o quadro
eleitoral, ouvir vizinhos, amigos e familiares, ponderar com calma, mastigar
suas dúvidas e indefinições, confiando em que da mastigação sairá a solução.
Não há bandeiras ideológicas desfraldadas
nem utopias iluminando o futuro. Os polos muitas vezes são mais semelhantes
entre si do que diferentes e não apresentam programas com intenções pedagógicas
– que expliquem o que se pretende fazer. É razoável que o eleitor se sinta
indeciso. Ele olha para seus interesses e suas expectativas, e percebe que está
vazio de convicções. Não é culpa dele. Com a oferta política que tem à
disposição, suas escolhas se tornam inevitavelmente dilemas.
*Professor titular de Teoria Política da UNESP
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