Correio Braziliense
Chanceler russo deu uma interpretação às
posições de Lula sobre a guerra da Ucrânia que transformou suas declarações
desastradas no reposicionamento estratégico do Brasil
Política externa exige um certo consenso
nacional. Devido à tradição do Itamaraty e à reconhecida competência dos nossos
diplomatas, o Brasil mantém boas relações com todo o mundo. Foram raros os
momentos em que esse consenso foi rompido, quase sempre em decorrência de
mudanças bruscas em relação aos Estados Unidos. As consequências não foram nada
boas para os governantes, a mais grave, em 1964, no governo João Goulart,
durante a guerra fria. Ontem, com a visita do chanceler russo Serguei Lavrov, o
presidente Luiz Inácio Lula da Silva triplicou a aposta que fizera na visita à
China, quando responsabilizou os Estados Unidos, a União Europeia e o
presidente Volodymyr Zelenski, tanto quando o presidente da Rússia, Vladimir
Putin, pela guerra da Ucrânia.
As declarações de Lula sobre a guerra da Ucrânia durante seu encontro com o presidente da China, Xi Jinping, foram um drible a mais e repercutiram muito mais do que os resultados positivos de sua visita àquele país, o maior parceiro comercial do Brasil. O mal-estar foi minimizado pelo Itamaraty, porque as posições oficiais do Brasil nos organismos internacionais continuam sendo a condenação da invasão da Ucrânia pela Rússia, mas fez ouvidos moucos aos recados mandados pelos diplomatas norte-americanos de que o presidente Joe Biden estava contrariado com o posicionamento do presidente brasileiro.
A visita de Lavrov ao Brasil foi um
desastre político. Águia da diplomacia mundial, o chanceler russo deu uma
interpretação às posições de Lula sobre a guerra da Ucrânia, que transformou
suas declarações desastradas no reposicionamento estratégico do Brasil na cena
mundial. Lavrov falou em russo, mas foi traduzido de duas maneiras diferentes:
em inglês, teria dito que o Brasil e a Rússia tinham “posições similares” sobre
a guerra da Ucrânia, o que já era uma posição perigosa; em português, na
tradução distribuída pelo Itamaraty, que as posições do Brasil e da Rússia “são
únicas”.
O problema não é tradução, para a qual
sempre pode haver uma desculpa: traduttore, traditore. É o posicionamento de
Lula, mais alinhado com o assessor especial da Presidência Celso Amorim, que
foi a Moscou conversar com o presidente Vladimir Putin antes da visita de
Lavrov, do que com a política de não alinhamento do Itamaraty. O ministro das
Relações Exteriores, Mauro Vieira, levou a bola nas costas. O Brasil já andava
no fio da navalha ao votar contra a invasão russa, mas não aderir às sanções
econômicas contra a Rússia. Agora, aos olhos das chancelarias ocidentais,
ultrapassou o Rubicão da neutralidade e se aliou à Rússia e à China.
Repercussão negativa
Se Lula acreditava que poderia liderar um
clube de países capaz de negociar a paz na Ucrânia, o que era uma proposta
plausível, ainda que muito difícil de ser viabilizada, agora ficou sem
condições de neutralidade para participar das negociações. Ontem, logo após o
encontro com Lavrov, a Casa Branca criticou duramente o governo brasileiro: “O
Brasil está papagueando a propaganda russa e chinesa sem observar os fatos em
absoluto”, disse a jornalistas o porta-voz do Conselho de Segurança Nacional
dos Estados Unidos, John Kirby.
Ao voltar da China, na escala em Abu Dhabi,
Lula dera o segundo drible, ao revelar uma visão simplória do problema da
guerra da Ucrânia: “A paz está muito difícil. O presidente da Rússia, Vladimir
Putin, não toma iniciativa de paz, o Volodymyr Zelensky não toma iniciativa de
paz. A Europa e os EUA terminam dando a contribuição para a continuidade desta
guerra”, disse, ao deixar os Emirados Árabes Unidos. E voltara a criticar a
Ucrânia, que foi atacada e invadida pela Rússia: “A construção da guerra foi
mais fácil do que será a saída da guerra, porque a decisão da guerra foi tomada
por dois países”.
Às vésperas de viajar a Portugal, onde há
milhares de refugiados ucranianos, Lula também levou uma invertida do porta-voz
da Comissão Europeia para Negócios Estrangeiros e Políticas de Segurança, Peter
Stano: “Não é verdade que os EUA e a União Europeia estejam ajudando a
prolongar o conflito. A verdade é que a Ucrânia é vítima de uma agressão
ilegal, uma violação da Carta das Nações Unidas”.
Se a repercussão internacional foi péssima,
na opinião pública brasileira foi pior ainda, embora os nossos políticos não
estejam muito preocupados com a Ucrânia. O Brasil faz parte do Ocidente
democrático, mesmo tendo a China como principal parceiro comercial, e a Rússia,
o quinto. Lula parece esquecer o apoio que recebeu do presidente Joe Biden no
processo eleitoral, quando os Estados Unidos defenderam a urna eletrônica, e na
tentativa de golpe de 8 de janeiro, quando o apoio dos EUA neutralizou a ação
de militares golpistas.
Há três explicações possíveis para a posição de Lula: a primeira, é a adoção da velha “doutrina realista” do Henry Kissinger, contrário à entrada da Ucrânia na Otan; a segunda, a tradicional visão antiamericana do PT, que atribui a Operação Lava-Jato à orquestração da CIA; e a terceira, certo deslumbramento com o próprio prestígio internacional, que agora foi abalado. Se Lula ambicionava o Prêmio Nobel da Paz, a pomba voou. Quando nada porque a Noruega acaba de aprovar a entrada da Suécia e da Finlândia na Otan.
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