Os movimentos relevantes mais visíveis no
âmbito do Poder Legislativo, feitos não só pelos presidentes Artur Lira e Rodrigo
Pacheco, mas por quadros da direita na Câmara, como Ciro Nogueira (PP), Marcos
Pereira (Republicanos), Elmar Nascimento (União Brasil) e também por efeito de
articulação de chefes partidários do centro como Gilberto Kassab (PSD) e Baleia
Rossi (MDB) têm ido todos na direção de se distinguir do bolsonarismo,
aumentando seu isolamento e virando a página da política polarizadora que
ocupou o Planalto durante os últimos quatro anos. Em termos estritos de
alinhamento de bancadas legislativas, isso vale tanto para um novo bloco de
centro que se forma a partir do PSD, MDB e Republicanos, como para a parte
“lirista” do antigo centrão, sediada no PP, com fortes laços no União Brasil e
mesmo no PL, onde divide teto com o “bolsonarismo-raiz”. Nesse plano específico
da formação de blocos parlamentares que facilitem ocupação de postos
legislativos chave para acesso ao Orçamento e decisões sobre matérias de
interesse do governo, são catalisadores naturais o interesse de deputados e
senadores no pleito municipal de 2024 e o horizonte de sucessões nas mesas
diretoras das duas Casas.
Mas também em termos da reorganização geral do sistema partidário – com movimentos de federação e fusão de partidos para além da específica legislatura – há um sentido reestruturante do campo da centro-direita, apontando para ainda maior organicidade da influência difusa que esse campo político vem conquistando após seguidas eleições, inclusive as de outubro último. Nesse plano mais geral a conquista de governos estaduais importantes por políticos desse campo, aspirantes a um protagonismo nacional, é um catalisador lógico, como é também a própria competição entre partidos para formarem bancadas numerosas e, portanto, eficazes, antes de tudo, para captação de maiores cotas dos fundos partidário e eleitoral, mas também, a depender do caso, para ocupar postos no Executivo. Três dos quatro catalisadores mencionados (eleições municipais, sucessão nas mesas diretoras e eventuais projetos nacionais de governadores) induzem a realinhamentos políticos que alteram os de 2022.
O movimento contrário (de sustentação da
polarização antiga) também existe, mas não parte do congresso e sim do
presidente, quando procura reverberar, de fora pra dentro do legislativo, temas
da agenda eleitoral que ele e seu governo precisam agir para preservar mesmo ao
custo de solavancos. Nisso Lula tem contado com a bancada de esquerda, mas
mesmo assim não com toda ela, porque mesmo na do PT há sinais de que, ao
contrário do que ocorre com suas alas mais ideológicas e também com a bancada
do PSOL, a virada de página é uma imposição do novo ambiente parlamentar, o que
aconselha a adoção de outra partitura política. Quanto ao PSB e PDT, a
interação com a nova partitura parlamentar ensaiada pelos blocos centristas é
ainda maior, chegando mesmo à integração no bloco de Lira, emprestando-lhe um
adereço de centro-esquerda, ao tempo em que especialmente o PSB, partido do
vice-presidente e de mais dois ministros, funcionam como agentes atrativos de
deputados e partidos de dentro e de fora da antiga base governista, desejosos
de se aproximar do novo governo. Um ponto a observar à parte é a escolha dos
dois partidos – assim como a da federação PSDB/Cidadania – pelo guarda-chuva de
Lira em vez do eixo Kassab-Baleia. Se as digitais de Lula podem ser supostas no
caso do PSB e do PDT, a hipótese não vale para a federação que os tucanos
lideram, sendo a confluência de governistas e oposicionistas num mesmo bloco de
centro mais um sinal de que os realinhamentos em curso obedecem, em muitos
casos, a uma lógica interna à Câmara, que é autônoma face ao governismo.
A nova partitura ainda não orienta – nem se
sabe se um dia chegará a orientar - o conjunto do governo. Problemas de
coordenação se mostram ali tão ou mais acentuados do que no próprio Legislativo,
onde sempre se espera mais dificuldades para uma ação coletiva. Um bom avanço
encontra-se esboçado na atitude de uma parte dos ministros, com destaque para
os da área econômica, que até aqui trabalham coesos sob a liderança da Fazenda.
O nível do forno em que o arcabouço fiscal vem sendo preparado é exemplar dessa
conexão entre a banda econômica do governo e a atual realidade do Poder
Legislativo. Outro exemplo de sintonia entre os poderes é a conduta discreta e
eficaz do ministro da Defesa na reconfiguração da relação do governo com os
militares, tema a ser tratado sem pressa no outro Poder. Nada disso se faria, é
óbvio, sem encomenda, ou ao menos, consentimento do presidente, a quem se deve
reconhecer também a responsabilidade pelo que aqui se apresenta como méritos.
As coisas estão se processando de tal modo
no âmbito da Câmara – assim como já se processaram para formar uma bancada
centrista moderada que dá, até aqui, as cartas no Senado – que o presidente
Lula encontra eco também quando se remete ao golpismo e ao desmonte
institucional bolsonaristas, que legitimam posições de censura e rejeição
agudas desse legado negativo por parte não apenas do governo como de um
espectro amplo de políticos do campo democrático. Mas Lula entra em modo solo
quando adota um discurso mais partidário e agressivo, que atinge alvos fora da
extrema-direita. É o que tem ocorrido quando a retórica do presidente e seu
partido mira outros alvos, como o BC e os militares e traz a público temas que
causam estranhamentos e distanciamentos no interior da chamada “frente ampla”.
São exemplos a recorrente narrativa do “golpe” de 2016 como meio de reescrever
a história dos anos de governo Dilma Rousseff, enfatizar que a herança negativa
teria começado logo após a sua queda e assim justificar propostas de
“revogaços”. Nesses momentos, como é ainda relativamente alto o teor de
complacência e boa vontade com o novo governo após o trauma da experiência
bolsonarista, as reações, em geral, oscilam entre críticas cautelosas, embora
crescentes e tentativas de minimização ou de interpretações benignas de
posições polêmicas do presidente. Numa palavra, ainda não está em cena uma nova
oposição, mas é cada vez mais evidente que partes relevantes do meio político,
assim como da imprensa, não terão atitude caudatária diante de posições
imoderadas.
Essa observação vale para o rescaldo, que
já se evidencia, de palavras e gestos de Lula na visita à China, para uns
ousados e para outros – inclusive este que escreve –, excessivos e até
imprudentes. Após o impacto de adesões ruidosas à gramática da diplomacia
chinesa e fustigações gratuitas aos EUA, durante essa recente viagem, logo na
sequência cá esteve o ministro russo das Relações Exteriores, Sergey Lavrov
que, após reunir com o seu par brasileiro, partiu deixando uma declaração, até
aqui não problematizada pelo Itamarati, sobre uma suposta similaridade das
posições dos dois países a respeito daquilo que o comunicado conjunto
sino-brasileiro chamara, dias antes, de “crise” da Ucrânia. Cabe a suposição de
que, nessa semana que começa, a política externa fez as partituras do governo e
do Congresso ficaram a uma distância inédita, desde janeiro. A ver.
A cena política atual tem esses dois lados,
ou essas duas cozinhas políticas onde se prepara o que será servido ao país
assim que comece a temporada de votações cruciais no Congresso. O presidente
alternando, diretamente ou através de seus ministros, fogo alto e fogo baixo em
panelas que podem escaldar e frigideiras que podem fritar, ou não, pessoas,
partidos e valores políticos. De outro lado, lideranças parlamentares
preferindo o forno, no qual não há labaredas a anunciar imediatamente ao
público quando a temperatura sobe, mas ela deixa seus efeitos sobre o que está
sendo assado e logo será servido. Sim, é para uma competição que os dois
poderes se organizam, cada qual no intuito de prevalecer. Enquanto a parte
engajada do público torce por um dos lados, a plateia em geral ganhará mais se
houver um empate. Claro que até o momento o governo se comunica melhor embaixo,
pelo recall da eleição e, por isso, sai na frente na venda do seu peixe. Mas o
poder real que emana do congresso detém instrumentos de peso apreciável para
reverter essa vantagem a médio prazo. Exatamente por isso ele não será mero
sancionador de decisões sobre economia, política interna ou externa, assim como
não necessariamente imporá ao presidente uma pauta de costumes ou tributos. Só
a pauta social é ponto de convergência indiscutível nesse jogo, o sal e a
cebola de ambas as cozinhas.
Penso que o fato da bifurcação do poder não
deve ser encarado como herança patológica do período bolsonarista, ou mesmo
como restabelecimento do padrão Eduardo Cunha de fazer política. Insisto de há
muito, nesta coluna, que no ambiente legislativo há tendências distintas.
Todas, é claro, trabalharão pela conservação e, se possível, pela ampliação do
espaço de poder da instituição e dos seus membros e se o Executivo tentar
reduzi-lo enfrentará uma coalizão de veto. Até aqui não o fez, felizmente. Mas
está deixando a coisa correr sem se aproximar preferencialmente, como creio que
devia fazer, de lideranças que se organizam na Câmara para contrabalançar o
poder de Artur Lira. Com esse alheamento aparentemente hábil, o Poder Executivo
pode estar selando definitivamente a sua coadjuvância no jogo institucional.
Espera-se dos líderes do governo na Câmara fazerem um movimento senão idêntico,
ao menos próximo, ao que, no Senado, ajudou muito a fortalecer e consolidar a
liderança de Rodrigo Pacheco. Aliás, o Senado está sendo um exemplo de como se
pode lidar com uma maioria de centro-direita de modo a aproximá-la de esquerda
e centro e encarar com unidade a articulação bolsonarista. Ali ela é mais
efetiva do que a da Câmara (onde impera um karaokê) mas é detida por um cordão
sanitário eficaz, que Pacheco lidera. Poderia haver gesto semelhante na Câmara,
apostando num cenário de não continuidade, a médio prazo, do esquema de Lira,
cujo poder pessoal tende a declinar à medida em que seu mandato avance no
tempo. O governo, ao contrário, terá quatro anos e precisaria se conectar com o
que pode ser um novo eixo de poder daqui a um ano e meio. Poder mais
estruturado na dinâmica dos partidos (das bancadas, mas também das suas
direções) do que reprodutor da fragmentação que atualmente serve a um mando
imperial. Normal que Lira, para aproveitar o tempo de poder que lhe resta,
insinue ameaças, como a de se aliar ao bolsonarismo, em caso de desafio ao seu
esquema pessoal. Seu poder de chantagem não é pequeno, mas tende (ou pode ser
levado) a esbarrar na lógica reestruturante da dinâmica parlamentar e do
sistema de partidos, que mencionei acima.
A centro-direita está vendo Bolsonaro ser
expelido e vendo também para onde Lula está querendo e pode ir com o instinto
político que o levou à China. Embora não deixe de costear sempre o alambrado do
palácio que hoje Lula ocupa, ela sabe que depois de 2024 é que se definirá o
quadro eleitoral de 2026. Até lá uma maioria congressual permanente tende a se
formar em torno de uma agenda própria e reagirá, seletivamente, à do Executivo.
Não está escrito que reagirá cooperativamente, ou competitivamente. Facilidades
e hostilidades surgirão a depender da recíproca aceitação, ou não, de uma
realidade de poder compartilhado. Hoje não há lugar para revival bolsonarista,
nem outros flertes autocráticos. A extrema-direita não foi vencida por uma
vontade política demiúrgica. Foi vencida por uma ação defensiva, dentro das
regras eleitorais, porque o sistema a ejetou. E o Congresso é sistema.
Então temos de passar a compreender e
avaliar, não apenas - como no passado - as supostas estratégias do presidente
para "obter" apoio congressual para uma pauta sua, como também
diferentes articulações no Legislativo para estabilizar regras que balizem e
institucionalizem o compartilhamento do poder com o presidente. Não é difícil
distinguir as que buscam conservar o domínio atual de Artur Lira, através da
sagração de um sucessor, daquelas que querem fazer alterações na cúpula do
Poder. Mais dia, menos dia, o governo terá que entrar em campo na Câmara, como
entrou no Senado, isto é, entrar não para impor sua própria fórmula, mas para
optar por uma, dentro do cardápio disponível.
O cientista político Marcos Melo interpreta
em artigo (“O governo derrapa”, FSP, 17.04.2023) que o presidente vem adotando
uma estratégia que combina ampla delegação de poder ao congresso em política
interna, com grande protagonismo da figura presidencial em política externa. A
lógica seria blindar-se de desgastes eleitorais com as previsíveis dificuldades
econômicas e construir reputação de estadista mundial através da pauta
ambiental. Ainda de acordo com o articulista ela está malogrando. Talvez Lula
precise mesmo revê-la em razão de vasos comunicantes entre os dois palcos de
atuação política. Os ministros Fernando Haddad, Simone Tebet, Geraldo Alckmin,
José Mucio, Marina Silva, ou mesmo Camilo Santana ou Nísia Trindade precisam de
ambiente arejado para negociar suas pautas no Congresso. Caso se consolide, no
plano internacional, as imagens do nosso país como aliado, ainda que
dissimulado, da Rússia e como cabeça de ponte da expansão chinesa na América, o
campo de manobra bolsonarista aumentará, inclusive no Congresso e a
consequência disso será a rarefação do ar sob o qual se discutirá as pautas do
Executivo. Ainda que alinhamentos súbitos de Lula fossem apenas suposições
enfatizadas por inimigos, é bom se reparar que não se está falando dos russos,
com quem Bolsonaro flertava, mas do Ocidente e dos EUA, o demônio que continua
a assombrar a esquerda anti-imperialista do nosso continente, enquanto Lavrov
embarca, ileso e espaçoso, do Brasil para Cuba, Venezuela e Nicarágua. Ninguém
precisa ensinar ao presidente Lula a importância de simbolismos em política. Se
está consentindo na difusão dessas imagens, ou fomentando-as, há uma esfinge a
decifrar.
Da mesma forma que a política externa
concentrada no tema ambiental pode ajudar eleitoralmente o presidente e quem
ele vier a apoiar no futuro, os efeitos de suas hesitações no compromisso de
alinhamento político prático com os valores da democracia no plano
internacional podem mobilizar de novo, como em 2022, mas dessa vez contra ele,
fatores externos de persuasão política capazes de influir no posicionamento de
importantes pilares da democracia brasileira, Congresso incluído. Nesses termos
é de uma imprudência espantosa colocar entre parênteses a bandeira da
democracia num momento mundial em que valores têm contado muito e servido de
biombos para a ascensão de extremismos. Antes e depois da vitória da democracia
nas urnas no Brasil havia uma pista pavimentada lá fora para que o novo
presidente brasileiro eleito trafegasse livre e ganhasse fôlego para a dureza
das batalhas internas. Após os ruídos da última semana há no mundo mais radares
atentos ao que se passará aqui.
O Congresso sabe disso e também não precisa
de lições sobre como agir quando um presidente derrapa. Vácuo não combina com
política, mister da instituição, portanto, sempre haverá pneus novos a oferecer
a quem derrapa, ou um corrimão para quem ficar mal das pernas. Mas dádivas não
fazem parte do jogo.
*Cientista político e professor da UFBa.
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