- O Globo
Dois anos e quatro meses depois de ter tomado a já famosa decisão a favor da liberdade de expressão, liberando as biografias não autorizadas com a frase de uma brincadeira infantil — “Cala a boca já morreu, quem disse foi a Constituição” — para garantir um dos mais importantes direitos humanos, a presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministra Cármem Lúcia, outra vez assumiu posição de vanguarda democrática.
O ponto central era o mesmo, a possibilidade, negada pela ministra, de uma censura prévia, desta vez no caso das redações do Enem, cujo edital repetia uma determinação que há anos vigora, a partir de governos petistas, que afinal foi derrubada na Justiça. Anular, dando nota zero a redações cuja abordagem pelo candidato fosse considerada atentatória aos direitos humanos.
Diversos movimentos consideram que, por ser uma decisão subjetiva, essa determinação constrangia os candidatos, impedindo-os de defender pontos de vista que pudessem ser criticados pela banca examinadora. Assim como impedindo o “cala boca” governamental, a ministra decidiu que biografias não podem ser previamente censuradas por qualquer cidadão ou autoridade, pois exigir prévia autorização seria o mesmo que impor censura, também agora a ameaça de impugnação anterior à realização da prova deixou de existir.
O sentido da decisão de Cármem Lúcia foi o mesmo nos dois casos: a liberdade de expressão — tanto de informar quanto de ser informado — tem na Constituição uma proteção, como exigência para a manutenção de uma democracia pluralista.
O ex-presidente do Supremo, ministro aposentado Ayres Brito, havia se pronunciado anteriormente na mesma direção, afirmando que a decisão de dar nota zero às redações que fossem consideradas atentatórias aos direitos humanos representava uma censura prévia. Para o ministro, a banca examinadora, caso a caso, pode decidir se uma redação merece ser impugnada por ofender os direitos humanos.
O mesmo argumento foi usado por Cármem Lúcia: “Não se desrespeitam direitos humanos pela decisão que permite ao examinador a correção das provas e a objetivação dos critérios para qualquer nota conferida à prova. O que os desrespeitaria seria a mordaça prévia do opinar e do expressar do estudante candidato”, afirmou a presidente do STF.
Ela atendeu a liminar concedida pelo desembargador Carlos Moreira Alves, do TRF da 1ª Região, que suspendia esse trecho do edital a pedido da Associação Escola Sem Partido, para a qual o critério não é “objetivo” e tem “conteúdo ideológico”. O caso foi levado ao Supremo em recursos da Advocacia Geral da União e da Procuradoria Geral da República.
A norma do Inep, que já existia há anos, foi adotada pelo governo Temer, e o próprio ministro da Educação, Mendonça Filho, chegou a fazer um apelo aos candidatos para que não desrespeitassem os direitos humanos em suas redações no Enem. Embora fosse um apelo correto, o sentido de apoiar a portaria do Inep dava à tentativa de censura prévia um endosso governamental na mesma linha de governos anteriores.
Para Cármem Lúcia, o cumprimento da Constituição da República “impõe, em sua base mesma, pleno respeito aos direitos humanos, contrariados pelo racismo, pelo preconceito, pela intolerância, dentre outras práticas inaceitáveis numa democracia e firmemente adversas ao sistema jurídico vigente. Mas não se combate a intolerância social com maior intolerância estatal. Sensibiliza-se para os direitos humanos com maior solidariedade até com os erros pouco humanos, não com mordaça.”
O tom didático da decisão da presidente do STF ficou claro: “O que se aspira é o eco dos direitos humanos garantidos, não o silêncio de direitos emudecidos. Não se garantem direitos fundamentais eliminando-se alguns deles para se impedir possa alguém insurgir-se pela palavra contra o que a outro parece instigação ou injúria. Há meios e modos para se questionar, administrativa ou judicialmente, eventuais excessos. E são estas formas e estes instrumentos que asseguram a compatibilidade dos direitos fundamentais e a convivência pacífica e harmoniosa dos cidadãos de uma República.”
Depois de decisões polêmicas na judicialização da política, que provocaram muitas críticas, Cármem Lúcia voltou a assumir a defesa da democracia em questões que afetam o dia a dia do cidadão comum, uma boa maneira de valorizar o pluralismo democrático.
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