Correio Braziliense
Na guerra que se instalou na sequência da
invasão russa do território ucraniano em 2022, Trump deixou claro seu apoio ao
agressor, posição esdrúxula, que contraria o bom senso e o direito que os
países livres e soberanos têm de defender o próprio território de ataques
externos
A Pax Americana, que vigorava desde que o
silêncio dos canhões anunciou o fim da Segunda Guerra, dá sinais de estar se
esgotando. Num momento histórico em que qualquer um pode afirmar, sem risco de
ser ridicularizado, que Hitler era comunista, que o Tiradentes era gay ou que o
papa é pedófilo, fica claro que nada é como antes. Nosso mundo de confiança,
acolhedor e reconfortante, vai se tornando um mundo de desconfiança, em que
acordos de cavalheiros se tornaram vaga reminiscência histórica. Na atualidade,
golpes baixos são assestados todos os dias pelas mais altas autoridades,
restando às vítimas os olhos para chorar.
Faz apenas um mês que Donald Trump assumiu a Casa Branca. Nesse curto espaço de tempo, seu comportamento, reforçado pelo de J.D.Vance, seu vice-presidente e pelo de Elon Musk, seu assessor especial, tem demonstrado que a solidariedade atlântica — base estável do que, até outro dia, se chamava Ocidente e que incluía a América do Norte e a Europa — está demolida, varrida, morta e enterrada. Em duas semanas, deixou de existir.
Pode-se até, sem forçar na caricatura,
incluir a América Latina nesse falecido mundo atlântico. Excetuando-se uma ou
outra erupção antiamericana aqui e ali, os países latino-americanos faziam
parte desse mesmo universo. Relevem-se naturalmente exceções tais como Cuba,
Nicarágua, Venezuela.
Abrigada há 80 anos sob o guarda-chuva da
proteção dos EUA, a Europa acorda assustada. A reviravolta é tão violenta e
inesperada que chefes de Estado e de governo, parlamentares e outras
autoridades parecem agitar-se, frenéticos, correndo de um lado para outro, tais
formigas cujo formigueiro tivesse recebido vigoroso pontapé. Da noite para o
dia, teme-se que os acordos consignados na Organização do Tratado do
Atlântico Norte (Otan) — tratado de defesa mútua assinado em 1949 entre EUA,
Canadá, Turquia e 29 países europeus — tenham-se tornado letra morta.
Na guerra que se instalou na sequência da
invasão russa do território ucraniano em 2022, Trump deixou claro seu apoio ao
agressor, posição esdrúxula, que contraria o bom senso e o direito que os
países livres e soberanos têm de defender o próprio território de ataques
externos. Segundo Trump, Zelenski, o presidente da Ucrânia, que conta com 63%
de aprovação de seu povo, não passa de um "ditador" que tem de mais é
que se dobrar às imposições de Moscou. Da posição de Trump, os espanhóis diriam
que é "un atropello a la razón".
Trump não parou por aí. Foi além, saltou
todas as linhas vermelhas e adotou ao pé da letra a posição de Moscou.
Declarou, alto e bom som, que a Ucrânia terá o direito de aderir à União
Europeia, mas não à Otan. É exatamente o que deseja um Putin incomodado com a
perspectiva de ter mais um membro da Otan à sua fronteira.
Zelenski, presidente da Ucrânia, mostrou
prudentemente seu desacordo com as palavras de Trump. Já um indignado Emmanuel
Macron, presidente da França, declarou que "ninguém tem o direito de dizer
que a Ucrânia não tem direito a entrar na União Europeia ou na Otan". E
embarcou para Washington a fim de repetir essas palavras a Trump, cara a cara.
Como se vê, formigas desnorteadas se perguntam como é possível que lhes falte
chão debaixo das patinhas.
Donald Trump, além de ser narcisista em alto
grau, é dono de um ego desmesurado. Disso, o mundo se deu conta. Outra faceta
de sua personalidade, que vai se revelando com o passar dos dias, é a que o
leva a não fazer distinção entre amigos e inimigos, aliados e adversários. A
Europa é a maior aliada dos EUA, uma realidade de 80 anos, desde o fim da
guerra. O desdém com que Trump tem tratado o aliado tradicional é estonteante.
Mas por que diabos o presidente americano
está agindo assim? Louco, não é. Tem de ter em mente um plano, posto que seja
inexequível. É plausível que, após analisar a atual situação geopolítica e
considerando a inescapável ascensão da China, tenha decidido cindir o tabuleiro
mundial em dois mundos, um capitaneado pelos EUA e o outro, pela China. Isso
explica seu desejo de trazer a Rússia para seu campo, passando por cima da
Europa — que considera favas contadas.
O plano até faria sentido, mas a forma estabanada como está sendo implantado pode pô-lo a perder. Se der certo, será a cortina de ferro ressuscitada, em outras coordenadas geográficas.
*José Horta Manzano, empresário
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