Em breve completará quinhentos anos o livro mais famoso do florentino Nicolau Maquiavel, "O Príncipe". De toda a história da filosofia política, é um dos livros mais fáceis de ler. Qualquer um entende tudo o que ele diz. Mas a discussão é áspera sobre o que ele quis dizer, tanto que ainda hoje muitos lhe atribuem uma frase que não é sua, a famosa "os fins justificam os meios". Mas, para nos aproximarmos de seu pensamento, lembremos: Maquiavel diz que vai tratar no Príncipe dos governos novos (não dos já existentes), conquistados com o apoio de "armas alheias". Em suma, trata de governantes que acabam de chegar ao poder, não pela força própria, mas graças a armas de outros. Tiveram sorte, foram bafejados pela fortuna - mas, se quiserem consolidar o poder, terão de se mostrar capazes de mandar eles mesmos. Essa capacidade Maquiavel chama de "virtude", a palavra que vem do latim "vir", varão. Não é uma virtude moral ou religiosa, mas a capacidade de governar a vida política.
Atualizando, podemos dizer que numa época democrática, em que todos os políticos são novos porque o poder não é mais herdado, a distinção de Maquiavel é útil de uma forma nova. Eles batalharam pelo poder? Virtùù. Receberam o cargo da vontade alheia? Fortuna. Essa diferença não se confunde com a questão de serem eleitos ou nomeados. Há eleitos graças ao apoio alheio. Há nomeados que lutaram pelo cargo. Mas a diferença ajuda a ver quem tem força própria para continuar o voo sem padrinho, mesmo tendo decolado graças a ele.
Dá para dividir o quarteto de políticos mais importantes de nosso país, nos últimos anos, segundo as categorias de Maquiavel? É instrutivo. Dois presidentes chegaram ao cargo por armas alheias. É o caso de Fernando Henrique, "accidental president of Brazil", como ele mesmo se diz. Em condições normais, seria difícil um intelectual de seu porte, nosso chefe de governo mais estudado desde José Bonifácio, vencer no voto popular. Sustento que foi eleito num estado de exceção econômica, quando a inflação - e o plano que lhe pôs fim - neutralizavam tudo o mais. Mas ele, de quem Conceição Tavares dizia que seria tutelado por Antonio Carlos Magalhães, firmou-se como um presidente divisor de águas, ademais o primeiro a ser reeleito em nossa história. Mostrou virtude, no sentido de Maquiavel. Com o segundo mandato, que criou um abismo entre ele e os demais líderes de seu partido (um dos quais teria sido seu sucessor em 1998, não fosse a reeleição), terminou de superar a dependência das armas alheias.
Também Dilma Rousseff chegou ao poder, não por virtù própria, mas pelo apoio que recebeu, no caso, de Lula. Daí que se coloque, para ela, a mesma questão de FHC. Este é talvez o momento decisivo de seu governo, em que provavelmente se definirão os próximos anos e seu papel na Presidência e mesmo na história. Voltaremos a ela.
Em compensação, dificilmente teríamos exemplos melhores de virtù que Lula - e Serra. O líder petista também era um presidente improvável - que, na frase de Delfim Neto, perderia no voto para qualquer poste. Mas o que fez entre 2000 e 2002 é digno dos melhores políticos: Lula aliou-se a um grande empresário, exigiu de seu partido que não o atrapalhasse, prometeu respeitar os contratos e recorreu a um habilíssimo marqueteiro. Daí, seu êxito. No governo, soube usar a maestria forjada nas derrotas para continuar vencendo. José Serra é outro líder de grande virtù, que se prepara há muito para os mais altos cargos. Sua trajetória é diferente dos outros três, que tiveram parca experiência de gestão (só FHC e Dilma, ministros) ou eleição (apenas FHC e Lula, para poucos cargos) antes da Presidência. Serra percorreu todas as etapas e se destacou em quase todas, de militante a ministro e governador. Preparou-se técnica e politicamente. O fato de não ter sido eleito presidente não depõe contra sua virtù. Nem sempre ela é premiada com o sucesso. Serra deu talvez o máximo de si, e seu jogo ainda não terminou.
Mas a questão agora é: será Dilma capaz, como FHC, que chegou ao poder levado pelos outros, de mostrar que sabe mandar e liderar? Não é fácil dar esse salto. Não sei se ajudou FHC o fato, como cientista político, de conhecer bem o autor que citei, Maquiavel. A prática política é mais arte que ciência - e a própria raridade de cientistas da política na chefia de governos (quem, além do próprio FHC?) mostra como a prática requer arte, enquanto a ciência serve para explicar depois, não para planejar ou prever. Terá Dilma voo pessoal? Mostrará virtù? A questão se torna curiosa porque para Maquiavel a virtù era viril, enquanto "a fortuna é mulher", acrescentava ele, e por isso "gosta dos que a espancam" (sic). O que é então uma presidente mulher, ou presidenta, como ela prefere, ter virtù? Muito já se falou da dureza de Dilma, que estaria dividida entre sua natureza feminina e uma cultura, um desempenho que seriam mais impositivos, "masculinos". Mas esse pode ser um problema mais nosso do que dela, porque o mesmo já se falou de Thatcher e Hillary Clinton, assim como se fala das ministras Ideli e Gleisi: ainda não nos acostumamos com o que é uma mulher no poder. Queremos que demonstrem rigor másculo e sensibilidade femininas - e nos queixamos quando são demasiado viris, como Thatcher, ou apelam demais ao feminino. É interessante, no debate que ora trata da presidenta e suas ministras, ver como a referência a seu sexo vem junto com a pergunta sobre o poder que têm e a truculência, ou não, delas - questões que não receberiam a mesma ênfase, tratasse-se de homens. Acompanhemos os próximos capítulos.
Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.
FONTE: VALOR ECONÔMICO
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