Há três décadas era fundado o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Naquela época, com inflação galopante, pouco importava produzir. A terra configurava excepcional reserva de valor. Por outro lado, cresciam as cidades, inchadas pelo êxodo rural, provocando crise no abastecimento popular. Tempos difíceis.
Originado na luta dos colonos gaúchos que acamparam na Encruzilhada Natalino, entre os municípios de Ronda Alta e Sarandi, o MST surgiu nos braços católicos da Teologia da Libertação. Favorecia suas ações o clima político do País. Em 1982 haviam sido, afinal, realizadas as primeiras eleições livres após o golpe militar e a oposição elegera a maioria dos governadores. No Rio Grande do Sul, Leonel Brizola brilhava com sua retórica.
Com a redemocratização em marcha, grupos alinhados à esquerda botavam suas asas para fora. No Leste, capengava o comunismo soviético; aqui, ao contrário, se animavam as ideias socialistas. Chegara a hora do ajuste de contas com o passado colonial. No campo, isso significava derrotar o latifúndio por meio da reforma agrária distributivista. "Terra para quem nela trabalha" - o slogan alimentava o sonho da justiça social.
Com José Sarney na Presidência da Nova República, o governo surpreendentemente anunciou seu ousado Plano Nacional de Reforma Agrária. Prometia assentar nos lotes, em quatro anos, 1,4 milhão de trabalhadores sem terra. A meta era, objetivamente, impossível de ser cumprida, mas todos nela acreditaram. Formulada nos anos 1960, a teoria do desenvolvimentismo nacional exigia quebrar a concentração da propriedade rural para fazer o País progredir. Reforma agrária, na lei ou na marra.
Nesse contexto vingava o MST, rivalizando com a tradicional Contag, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura, entidade criada pelo sindicalismo de Getúlio Vargas. Manipulada historicamente pelo governo, a Contag tornara-se útil ao jogo do poder político. Pelega, como se dizia. A sociedade, querendo mudança, torcia pelo MST, que passou então a simbolizar a nova utopia agrária.
Durante seus 30 anos de existência o MST passou por três fases. Na primeira, logo se expandiu pelo País. Dirigida por jovens lideranças, a organização deixou o sul e rumou, inicialmente, para o Pontal do Paranapanema (SP), Pará, Mato Grosso e Pernambuco. Arregimentou e treinou quadros, articulou invasões, enraizando-se estrategicamente pelo território nacional. Aonde chegavam, contrastavam aqueles jovens loiros, de olhos claros, sotaque sulino, com as pessoas pobres e analfabetas, amorenadas pelo sol escaldante, mãos calejadas, estas parecendo ouvir profetas da redenção humana. Ninguém como o MST soube misturar a luta ideológica com o apelo messiânico.
Na segunda fase o MST radicalizou sua tática, construindo uma "fábrica de sem-terra" a partir da massa de desempregados urbanos. Até veículos com alto-falantes se utilizavam na periferia vendendo o passaporte da felicidade no campo. Bastava pagar uma taxa de inscrição, montar uma barraca de lona preta na beira da estrada e pronto: o excluído transformava-se num sem-terra. A moda pegou. Dezenas de movimentos "revolucionários", com nomes assemelhados, surgiram alhures, destinados a invadir fazendas. Jagunços gostaram da ideia, montaram seus esquemas criminosos e o banditismo rural se expandiu. Junto, cresceu a violência.
Nesse mesmo período, todavia, avançava a modernização capitalista da agropecuária. Progressivamente, quem, na verdade, estava derrotando o latifúndio era a tecnologia, a produtividade puxada rentabilidade do mercado. Mais adiante, após a estabilização da economia e a globalização, o Brasil começou a consolidar um modelo de produção rural altamente competitivo, tropicalizado, hoje admirado mundialmente. Os recordes na safra de grãos expressam facilmente tal revolução produtiva no campo. Mas na pecuária também se verificou um salto extraordinário: o Censo do IBGE mostrava, em 1980, uma relação de 0,68 cabeça de gado por hectare de pastagem; em 2006, a relação subiu para 1,1. A produção de leite por vaca/ano passou de 934 litros para 1.618 no mesmo período. Incrível.
É a modernização da agropecuária que explica, em parte, a terceira fase do MST: a decadência. Falta atualmente mão de obra em todos os setores da roça, uma escassez que eleva a remuneração do trabalho. Um tratorista, por exemplo, aufere ganhos que, em Mato Grosso, chegam a cinco salários mínimos. O que é preferível: padecer num lote distante da tecnologia e longe do mercado, ou conseguir um bom emprego, carteira assinada? Aguentar doutrinação velhaca, pagar comissão ao MST, ou crescer na vida emancipado?
Dentre as várias razões que explicam a derrocada do MST, uma delas recai sobre o sucesso da causa: o Brasil realizou, em 20 anos, a maior reforma agrária do mundo, distribuindo terras para 1,1 milhão de famílias. Dessas, 55% se encontram sob o domínio político da organização, que precisa, agora, cuidar da cria, mostrar resultado. Qualidade, não apenas quantidade. Um programa de reforma agrária, afinal, não pode virar rosca sem fim.
Perguntam-me sempre se foi importante o MST. Em termos, sim. Cumpriu papel histórico. Ao combater a terra ociosa, empurrou a burguesia agrária rumo ao progresso capitalista. Mas quando decidiu fazer justiça com as próprias mãos, tornando-se violento, manipulador dos miseráveis, passou a agredir a modernidade. Pior, ao participar do jogo da corrupção escondido entre os convênios do governo, maculou sua aura. Desviando dinheiro público, prostituiu-se.
Aos 30 anos, o MST perdeu o bonde da História. Sofre sua crise de identidade.
*Xico Graziano é agrônomo e foi secretário de Agricultura e secretário do Meio Ambiente do Estado de São Paulo.
Fonte: O Estado de S. Paulo
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