Embora as turbulências políticas e policiais contaminem sobremaneira o debate, o Brasil precisa, sim, de uma nova lei que defina o crime de abuso de autoridade.
As regras hoje em vigor datam do início da ditadura militar, há mais de meio século, quando proteger os cidadãos dos excessos e arbítrios do poder público não era, digamos, uma prioridade.
Nem seria preciso mencionar casos mais dramáticos, como maus tratos e constrangimentos impostos a presos ou suspeitos. Basta dizer, num exemplo mais singelo, que hoje não está tipificado o crime de invocar o cargo para obter vantagem ou se livrar de obrigação legal —a popular "carteirada".
Em outras circunstâncias, um projeto de legislação que desse conta de tais preocupações —como o que o Senado aprovou nesta quarta-feira (26)— provavelmente não suscitaria maior controvérsia.
Vivemos, porém, os tempos da Lava Jato, em que o mundo político debate-se para sobreviver aos inquéritos que atingem a elite do Executivo e do Legislativo. Nesse contexto, a resistência de investigadores e magistrados a normas que possam tolher sua atuação reverbera com justa intensidade.
O texto votado pelos senadores traz inovações meritórias, sem dúvida, ao detalhar condutas abusivas no tratamento de detentos, no uso de algemas ou na exposição de investigados à execração pública, bem como as penas correspondentes a cada caso.
Um de seus defeitos mais graves parece, ao menos por ora, sanado. Suprimiu-se trecho que abria margem para punir juízes cujas sentenças revelem divergências tidas como exageradas —uma perigosa avaliação subjetiva— na interpretação das leis e das provas.
Manteve-se, com ajuste conveniente, o artigo que confere a quem se considerar vítima de abuso legitimidade para iniciar ação penal contra a autoridade, sem que seja necessária iniciativa do Ministério Público. Acertou-se, em negociação, que isso poderá ocorrer caso o MP não se manifeste sobre o pleito em até seis meses.
O arranjo afigura-se satisfatório para contornar os riscos de eventual viés corporativo de procuradores, que poderiam resistir a acusar colegas e parceiros de ofício.
Há, no entanto, ajustes fundamentais a serem feitos no projeto, que vai à Câmara dos Deputados. Em muitos artigos, a redação vaga leva incerteza à atividade de magistrados e investigadores. O que caracteriza, por exemplo, "demorar demasiada e injustificadamente no exame de processo de que tenha requerido vista"?
A profusão de advérbios de modo ("exacerbadamente", "manifestamente") coloca os futuros julgados por abuso à mercê de critérios arbitrários dos julgadores.
Tudo isso, no entanto, pode ser corrigido sem que se desfigure o cerne do diploma. Persistirá, decerto, o risco de que os políticos queiram redigir o texto a partir de seus interesses mais urgentes. A vigilância da opinião pública tem sido, até aqui, um antídoto poderoso.
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