O Globo
O carnaval chegou
ao fim, tiremos a fantasia. Existe um nome para a polêmica sobre os desfiles
das escolas de samba do Grupo Especial. Sete letras. Começa com “R”, termina
com “ismo”, o sufixo que denota doutrinas, sistemas, ideologias e
doenças. Racismo.
A discriminação racial no Brasil se dá de muitas formas, várias camadas, como
se diz hoje em dia. Uma delas é disfarçar o incômodo com o protagonismo preto,
negro, afro-brasileiro, periférico, favelado com discursos relacionados à
monotonia, chatice, irrelevância, falta de liberdade, cerceamento à liberdade
de expressão e até incompreensão. Balela. O nome é racismo.
Começou com a entrevista do carnavalesco da Unidos de Vila Isabel, escola de samba da maior qualidade, vinculada pelo nome ao filho mais ilustre, mestre Martinho. O presidente de honra da Vila é um artista negro com imensa contribuição para a valorização da cultura e da identidade afros, bem como para a integração do Brasil com países do Atlântico Negro, Angola em particular. Paulo Barros, quatro troféus por desfiles no Grupo Especial do Rio de Janeiro, disse à Folha de S.Paulo: “A maioria dos enredos deste ano são afros, tudo que já foi visto e revisto, e posso te garantir que 90% de quem está assistindo ao desfile não vai entender nada”.
A safra de enredos (supostamente)
incompreensíveis lotou a Marquês de Sapucaí nos ensaios técnicos. Foram capazes
de lotar a Marquês de Sapucaí nos 11 dias de travessia gratuita, sete de
escolas do Grupo Especial, quatro da Série Ouro. No sábado, 21 de fevereiro, 80
mil espectadores ocuparam arquibancadas e frisas para não entender nadica de
nada sobre as mandingas do Salgueiro; a visita de Oxalá a Xangô, tema da
Imperatriz Leopoldinense; o Malunguinho da Unidos do Viradouro, campeã em 2024
com “Arroboboi Dangbé”. Se nos três dias do desfile principal houve quem não
compreendesse, o problema está na plateia, não nos enredos. Quem gosta e vive
escola de samba teve longa temporada de aprendizagem. Os temas foram anunciados
antes da virada do semestre; os sambas, escolhidos até outubro; as gravações
oficiais, no início de dezembro; nas redes sociais, multiplicam-se vídeos,
sinopses, glossários, contextos.
Os pretos sequestrados de África e
escravizados pelo colonizador perderam nome e sobrenome; tiveram a língua-mãe
interditada; por imposição, aprenderam o português. Deram vida ao candomblé,
inventaram o samba e as escolas. Cinco séculos depois, punhados de brasileiros
confessam, sem enrubescer, o desconhecimento — e o desinteresse — sobre
História, personagens, heróis, mitos, ritos e palavras de origem africana.
Evidência inequívoca do que a escritora Ana Maria Gonçalves, autora do
best-seller “Um defeito de cor”, costuma chamar de “ignorância ativa”, situação
em que o indivíduo ostenta a incultura.
Só muito desinteresse, desprezo, falta de
empatia, arrogância explicam alguém sugerir que Laíla (Beija-Flor) e Milton
Nascimento (Portela), Oxalá (Imperatriz) e o terreiro da Casa Branca do Engenho
Velho (UPM), Malunguinho (Viradouro) e Xica Manicongo (Paraíso do Tuiuti),
ritos de proteção (Salgueiro) e a religiosidade afro-ameríndia do Pará (Grande
Rio), Logunedé (Unidos da Tijuca) e cultura bantu (Mangueira) são a mesma
coisa. Uma dezena de temas e abordagens tão diversas quanto Monteiro Lobato e
Carlos Drummond de Andrade, Proclamação da República e chegada dos portugueses,
Chico Buarque e Roberto Carlos, Ayrton Senna e Betinho, Bibi Ferreira e Dercy
Gonçalves, Sílvio Santos e Boni, Brasília e Natal, Florianópolis e Araxá,
Maricá e Manaus. Arrepio, segredo, medo e assombração não parecem, mas são
enredos diferentes.
Os enredos afro-brasileiros estão recuperando
o espaço negado por longo tempo, décadas, aos que inventaram a festa e, ainda
hoje, a constroem. Enriquecem o carnaval e cumprem papel pedagógico
complementar na formação de alunos na escola e de cidadãos no convívio social.
Episódios e figuras relegados pela História oficial à invisibilidade emergem em
sambas, alegorias e fantasias. Empoderam e orgulham gente que desconhecia a
própria saga, ignorava a potência que carregam. Por isso assustam a quem se
acostumou ao palco e não se conforma em dividir protagonismo. Neste ano, até a
banca de julgadores da Liesa, formada predominantemente por pessoas brancas,
validou as escolhas das agremiações: distribuiu 26 dez e 11 notas 9,9 (em 40
possíveis) aos enredos afrocentrados. Quem for contra reza.
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Laíla, que morreu de Covid-19 na pandemia,
assim como mais de 700 mil brasileiros, teve o gurufim ( velório com música em
honra de sambistas) que lhe foi negado quatro anos atrás. Neguinho da
Beija-Flor foi brindado com o 15º título no carnaval em que se despediu de 50
anos como voz da escola que tornou sobrenome oficial. Identidade é força.
Valeu, Nilópolis.
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